Meu retrato

Maru Chiquinha
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readJul 1, 2024

Nasci morrendo. Literalmente. Não respirei. Não chorei. Foi um deus-nos-acuda pra me salvar. Fizeram promessa, simpatia. Recentemente a neuropsicóloga falou que esse episódio pode ser o responsável pelas (pequenas) deficiências no meu cérebro. Quem sabe? Só estar viva me importa.

Sou negra. Tenho cabelo crespo, curtinho e grisalho. E estou acima do peso. Há uma semana pesei 65 quilos. Peso esse que, distribuído em 1,47m, sobrecarrega alguma parte do corpo. Desde que me lembro de mim, tenho excessos de quadril e pernas. Mas agora, nesse processo de “engordamento”, braços e barriga também ganharam volume. Estou uma bola. O tempo foi até generoso comigo, nesse quesito. Cheguei perto dos 40 anos com 47 quilos. De lá pra cá, parece que toda balança enlouqueceu: o pêndulo pula pra cima “sem critério”. Mudanças aceleradas. Dificuldade de encontrar roupas confortáveis e bonitas. Emagrecer é necessidade imperativa. Bem como fazer atividade física que me fortaleça a estrutura. Pra eu chegar bem aos 70, 80… anos.

Não sou bonita. Nunca fui. Mas já me senti muito feia. Assim mesmo: feiúra com requintes de crueldade. Além das espinhas no rosto e nas costas e do cabelo morto de tanto maltrato, pesava sobre mim a desproporção do corpo. Nariz grande. Muita bunda, pouco ombro, quase nada de peito. O espelho fazia careta pra mim o tempo todo. Quando a vida adulta chegou, eu já trabalhando como funcionária pública, passei a me cuidar melhor: comprava roupas mais adequadas, tratava o cabelo, malhava. Aos 40, eu estava no ápice, me achando interessante, viçosa, atraente. Justo nessa época, voltaram os sintomas da depressão que me perseguia há tempos. Chegaram com força, bagunçando tudo. Mais perrengues.

O desajuste emocional foi uma recorrência na minha vida. História batida, a que resumo em seguida, mas acho que foi a partir dela que tudo começou. Por querer estudar e dar a mim um rumo diferente do que vida na roça “prometia”, deixei minha família quando ainda era menina. Fui morar com estranhos, pra servi-los como doméstica, enquanto construía meu futuro. Nunca lidei bem com isso. Eu, pobre de marré deci, queria tratamento amoroso, respeitoso. Recebi, de algumas pessoas. Mas o contrário também. Fartamente. Patroas exigentes. Machos nojentos querendo tirar não só “uma casquinha, mas tudo que pudessem. Muito trabalho e pouco retorno. Cansaço. Carências. Insatisfação. Não sabia o que fazer. Me debati. Cortejei a morte. Acumulei raiva, mágoa, tristeza. Lixos emocionais. Lutei loucamente pra achar equilíbrio. Pra me sentir normal. Ora acreditando tê-los superado. Ora só fazendo de conta. Pra sobreviver. Mas a cada recaída eu me dava conta da ineficácia de tais esforços. Autoestima em agonia, debilitada.

Acalmadas as tempestades, aos 62 anos estou sossegada. Experimento novidades boas, finalmente. Sou casada com um homem bom. Estou aposentada, depois de trinta e poucos anos de magistério. Moro na minha casa e me preparo pra reformá-la. Leio os livros que eu quero. Escrevo. A saúde está melhor do que tenho feito por merecer. Uma fase boa chegou pra mim. Quem diria! Louvado seja Deus por isso.

(M. C. — 30.06.2024)

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