não é sobre arrepio

Luciana Godoi
Comunidade da Escrita Afetuosa

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Se eu pudesse contar da infância dela pelos sons que cantam em meus ouvidos, começaria pelo barulhinho da sua boca ao mamar.

Faz tempo que não escuto, mas basta fechar os olhos e lá vamos nós para aqueles acordes que faziam meu coração respirar de alívio. Cada vez que eu escutava, era um monte de vida entrando dentro dela. A vida que vivemos depois e todo o tempo que temos pela frente.

O som do seu choro, claro, desde o primeiro até o que escutei ontem.

Ela cresceu tanto, mas ainda chora no mesmo tom e ainda se acalma no mesmo lugar. Dia desses, escreveu (sim, ela escreveu!) que me ama porque eu a pego no colo quando ela chora. Hoje, seu choro já se retrata nas letras que ela mesma junta e o lugar da calma é aquele que ela escreveu e onde sempre vai caber. Não importa quando ou quantas forem suas lágrimas. Não importa nem mesmo se meu colo estará por perto. A gente sempre vai dar um jeito.

Escuto o som do seu chamar, às vezes muito antes de acontecer.

Quantas noites caminhei ao seu encontro para descobrir que não, ela não tinha acordado. Ainda assim, prefiro ficar ao seu lado até amanhecer a voltar para a cama onde ela não está. No embolar do sono, nem penso em nada disso. Mas quando o sol nasce e ela jura que não me chamou, sei que aquele som era meu na verdade: um eco da saudade que eu sempre sinto de senti-la perto.

Eu a escuto rabiscar com a ponta da canetinha e gargalhar com os arrepios que o barulho me causa, igualzinho quando vimos um sapo esmagado e eu mostrei a ela os pelos do meu braço se levantando de agonia. E quando nosso bugue desceu as dunas de Jeri e ela soube pela primeira vez o que era sentir frio na barriga. Gritamos, choramos, imploramos. Não tão rápido motorista!

O ranger dos seus dentes, enquanto ela dorme…

É ele que me garante que seu sono está pesado e é seguro que eu me afaste ou embarque nos meus próprios sonhos. Também já soaram os sinos da minha preocupação. Porque ela faz isso? Onde está essa ansiedade que não consigo ver? Me culpo por não enxergar tudo que acontece com ela, me culpo por não cavar até o último tiquinho de terra todas as profundezas do seu existir. Mas seu ranger de dentes embala meu sono e eu me deixo ir, convencida de que são só dentes que cantam seus sonhos. E a vida pode ser leve assim.

Nesse exato instante, enquanto escrevo, os sons da sua infância são da água que se espalha quando ela mergulha, alcançando o chão da piscina com as suas mãozinhas e me perguntando mil vezes se vi o que ela aprendeu a fazer.

Vi, meu amor! E ouvi, senti o cheiro, guardei em cada pedacinho de mim todos os detalhes do seu crescer, desde o nosso primeiro encontro. Você lembra? Não tô falando do seu choro ao nascer. Tô falando do ritmo dos nossos corações se acertando em compasso, quando a gente se achou e nunca mais se separou.

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