Nariz recauchutado

Anabeatriz
Comunidade da Escrita Afetuosa
4 min readApr 22, 2024

“O problema é do lado de lá”. Aí eu rebati “o lado de cá também não ajuda.” Família de descendentes de italianos de um lado e de croatas do outro. Países próximos no mapa e com uma característica física que os aproxima: o nariz grande.

Minha avó materna foi a primeira que se aventurou. Mesmo com a medicina não tão avançada como nos dias de hoje, ela se submeteu a uma cirurgia plástica no nariz. Quis afiná-lo, diminuí-lo. O resultado ficou aquém das expectativas, a ponta ligeiramente torta. Ela, porém, descartou qualquer correção e desistiu de passar por um novo procedimento.

Depois, foi a vez da irmã de vovó. Embelezou mas o efeito não ficou perfeito. A fila foi seguida pelas minhas duas tias, irmãs de minha mãe. Elas sim conseguiram o resultado esperado: nariz pequeno e fino. A tia Neusa até que teve sorte. No pós operatório, com o rosto ainda roxo da cirurgia e o nariz coberto pelo tampão, não pensou duas vezes quando soube que o noivo vinha visitá-la. Arrancou todas as faixas e curativos para esperá-lo, em desobediência às orientações médicas. Assim mesmo o nariz ficou bonito e ela o empinava de um lado para o outro.

Do lado da família de meu pai, a situação não era diferente. A irmã mais nova dele foi motivo de chacota na adolescência por causa do nariz adunco. E, aos dezessete, submeteu-se a cirurgia plástica. Ficou satisfeita, bela. Prendia os cabelos para deixá-lo à mostra. Seu filho mais novo também operou, os outros dois mantiveram o narigão. O primo Marcos foi outro que suavizou o nariz.

Papai, mesmo tendo o nariz proeminente, não se incomodava. Meu irmão tampouco. O de mamãe era grande, mas ajeitado. O meu? Torto, com desvio de septo enorme e a ponta para baixo.

Não gostava de tirar fotos de close do nariz. As “selfies” não eram populares na minha adolescência, para meu alívio. Meu nariz de fato me gerava incômodo, afetava minha autoestima.

Nos meus dezesseis anos, fui ao hospital visitar uma prima que havia reduzido o nariz. Ficou ótimo. Minha mãe cogitou que eu fizesse minha cirurgia com o mesmo médico dela. Passei em consulta. Ele segurou o meu queixo, olhou de um lado do rosto, do outro. Propôs modificações. Era caso de cirurgia. Mas não quis operar naquele momento, não a ponto de perder as férias de verão na praia. Eu me arrependi de não ter feito a cirurgia naquela época e com aquele médico mais experiente no assunto.

Esperei uns três anos. Iniciei a faculdade com aquele velho nariz torto. E nas férias de julho, mês de inverno, passei pela cirurgia. O médico era outro, oriental e conhecido da família.

A operação foi logo cedo, por volta das seis da manhã. Jejum absoluto desde a noite anterior. Eu, deitada na maca, olhava a minha volta e tentar ouvir o que os médicos e enfermeiros diziam. Um deles preparava a anestesia geral. Eu, quieta e ansiosa, sentia-me forte. Não achava que aquele liquidozinho fosse capaz de me derrubar. Uma picada e minha cabeça começou a rodar. Pisquei os olhos uma, duas vezes até que puft. Apaguei.

Acordei horas depois na mesma maca em uma enfermeira. Tinha um espaço restrito para mim. Minha mãe estava lá e meu pai veio me visitar. Ele sentou-se na beirada da cama, falava comigo mas não olhava diretamente para meu rosto. Eu tinha os olhos roxos, o nariz com uma capa que parecia gesso e a ponta com pontos. Parecia que tinha sido atropelada.

Fui liberada para voltar para casa. Seriam dias de reclusão em casa, sem muitas visitas e cumprindo o protocolo médico de cuidados com o nariz. Limpar a ponta com uma gase diariamente, deitar com a barriga para cima, repouso.

Eu olhava-me no espelho e tentava prever como ficaria meu nariz. A expectativa era grande. Queria perfeição, um nariz reto, fino, delicado. O osso que ficava entre os olhos foi bem raspado, diminuído, eu podia sentir antes mesmo de ver o resultado final.

Para dormir, era difícil. Não estou acostumada a dormir de barriga para cima. Minha mãe acomodou dois travesseiros atrás do mesmo pescoço. Cobriu-me. Tomei arnica para amenizar a rouxidão. Dormi.

Sete longos dias de cuidado e a vida paralisada, que agora não seria mais com um nariz grande e torto. “Você vai respirar melhor”, prometeu-me o médico.

Eu tirei uma fotografia daquela fase. Vesti um vestido marrom, soltei os cabelos, o rosto já menos inchado, e, com o nariz enfaixado, sorri para o clique.

Chegou o esperado dia de retornar ao médico e retirar o tampão e tudo que cobria o nariz. Mamãe dirigia e minha ansiedade aumentava à medida que nos aproximávamos do consultório. Queria sentir-me bela.

Sentei-me em frente ao médico. Disse-lhe que cumpri à risca as suas recomendações. Ele pegou uma pinça. Foi arrancado o esparadrapo, gesso, curativos. Examinou o resultado. Seis meses até o nariz desinchar integralmente. Ele pegou um espelho e me mostrou. “Essa é a nova você.” Olhei primeiro para meus olhos, depois desci o olhar para o centro do rosto. Passei a mão em meu novo nariz. Ele está reto, o osso entre os olhos menor, a ponta levantou. Sorri. Nariz recauchutado. Esta é a minha nova versão.

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