Nino

Luciana Godoi
Comunidade da Escrita Afetuosa

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Por sete anos fomos só nós duas.

Ela me acompanhava até o portão, quando o sol nem tinha nascido, e não tirava os olhos até que eu virasse na primeira curva. Depois, eu sei, fazia uma porção de preces por mim. De noite, cozinhava almôndegas, rocambole de carne, frango empanado e feijão fresquinho. E a gente conversava sobre minhas aulas de direito civil.

Ela nunca se esquecia de nada, nem me deixava ajudar com a louça. Ela sempre rezava sentada de lado na cama, com a Bíblia aberta e uma porção de santinhos espalhados. Um pra cada filho, nora, neto, bisneto e mais uma porção de gente que transbordava do seu coração. Ainda transborda, digo.

Foi só eu me despedir da vida de nós duas pra que a dela degringolasse e, por um tempo, até me culpei. Só que foi coisa do acaso. Ela precisou de uma cirurgia, teve uma complicação e todas as limitações vieram. Cadeira de rodas, olhos que só enxergam de frente e não vêem mais os relances. Nunca mais enrolou um bolinho de chuva sequer.

Mas algumas coisas não mudaram. Ela continua gostando das unhas feitas, pele hidratada e tão tão tão cheirosa. Brincos de pérola. Ela continua rezando na chegada e na partida de cada um, para os santinhos e por todos nós. Às vezes, se esquece de alguém, sabe que esqueceu porque a conta não fecha e só dorme depois de lembrar.

Ela continua me enxergando, mesmo que eu tenha que segurar seu rosto e apontar seus olhos para os meus.

Me enxerga muito além, aliás.

Da última vez em que nos vimos, sem que ninguém tivesse contado antes, ela soube de imediato que eu não estava só. Havia alguém morando dentro de mim. E quando eu ainda não tinha nenhuma pista, ela disse que, dessa vez, seria um menino.

Então, esse texto é pra te falar, vó, da vida de nós duas, do quanto é bonito que você continue a me enxergar, mesmo que sem os relances. Ah, e pra te contar que, sim, é mesmo um menino. Nino.

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