O almoço

Roberta Assumpcao
Comunidade da Escrita Afetuosa
2 min readSep 20, 2023

A mesa do almoço era um local sagrado para minha família. De segunda a sexta almoçávamos juntos. Uma benção, todos pensam.

Mãe, pai, irmão e irmã.

Apesar da minha mãe sempre inventar pratos deliciosos para agradar, o sabor que tocava a língua de todos parecia veneno. A mesa do almoço era na verdade o local sagrado de guerra.

Como um escondidinho feito com uma suculenta carne mal passada, a luta do almoço sempre foi velada. Palavras ao invés de espadas. Críticas recheadas de julgamento, temperadas de deboche.

Ainda nem tinha me sentado a mesa para almoçar quando escutei “Você apela demais”. Vi sair a fumacinha do feijão enquanto pensei que apesar de não ser novidade escutar isso, dessa vez parecia diferente.

“Não pode falar nada com você. É só uma brincadeirinha”.

Garfada, jab, guardanapo, direto. Nocaute. Todo dia a mesma coisa. “Hoje não”, pensei.

Naquele dia consegui olhar no espelho antes de me sentar à mesa e me enxergar de verdade. Quem eu era aparte dos estereótipos que a mesa do almoço tinha servido para mim. Gostei da pessoa que me olhava de volta.

Saboreei a comida como se fosse a minha última refeição. Os detalhes do arroz molhado com o feijão — sempre por cima como tinha mania de comer — o suco de limão sem açúcar que matava a sede e permitia pensar antes de reagir.

Os socos continuaram a vir na forma de provocação.

“Ihhh apelou. Não vai responder mais nada?”

Estourei a gema do ovo mole enquanto pensava: “última vez”. Levantei, agradeci, fui embora e, depois disso, nunca mais voltei aos almoços de família de dia de semana.

Foi aí que virei mulher.

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Roberta Assumpcao
Comunidade da Escrita Afetuosa

Escritora amadora que tecla compulsivamente para alcançar as 10.000 horas de treino que te torna profissional. Quer tc? : @palavruda