O espírito do mar

Anabeatriz
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readJul 6, 2024

Estávamos sentados os dois sobre o banco no calçadão da praia. Eram as férias de janeiro da escola. Eu deito em seu colo, papai aponta as estrelas no céu. As três marias, o cruzeiro do sul. Conversamos sem parar. Ele me conta de sua fase universitária, a família, os irmãos de vovô.

A noite escura se mistura com a escuridão da cor do mar. Ao fundo, na imensidão daquele breu, eu vejo luzes de barcos que se veem ao longe.

Minha mãe e irmão pequeno estão no apartamento. Eu e papai que fomos caminhar à noite, sentir o cheiro do mar, ouvir o barulho das ondas. Outras famílias também estão sentadas ou caminhando pelo calçadão da praia da Enseada no Guarujá. O mar me aquieta. Somos pai e filha, dois amigos, almas que se conectam.

Assim, como anos depois, eu piso na mesma areia da praia da Enseada. Um pouco mais afastada do banco do calçadão. Sento-me sobre a areia, ao lado dele, o primeiro amor. Sinto uma paz muito grande, o amor a me invadir o espírito, uma completude. Olhamos juntos a imensidão do mar à noite. Tudo escuro. Ele e o mar me aconchegam.

O barulho do mar espanta a quietude da noite. Não se ouve o movimento dos carros, das falas das pessoas ao cruzaram os espaços. E o mar se faz intenso, barulhento, expansivo. Sobretudo nas noites de chuva, ele se faz presente, gigante.

E deitada na cama, o som do mar me desperta. Caminho até a janela, quero assistir as ondas quebrando, indo e voltando, até me confortar com elas e pegar no sono novamente.

O mar tem muitos mistérios. O que realmente tem por debaixo de toda aquela água? Areia, a vida marinha que se vê na televisão, dejetos? Tem também as histórias de pessoas que nadaram naquelas águas, navegadores, sonhadores.

Anos depois, vou ao apartamento do Felipe em Santos que fica no Gonzaga de frente ao mar. Logo na entrada vejo as luzes da sanca a iluminar o apartamento e as do calçadão que clareiam o mar. Muitas pessoas transitam pela beira da praia naquela hora.

Abro a janela do quarto e dou de cara com o navio de cruzeiro que cruza o mar, deixando o Porto de Santos e seguindo rumo a Argentina. O navio é enorme, todo branco e iluminado por fora, em contraste com o azul escuro das águas e da noite.

O mar é um alento, um companheiro, um calmante. Para os dias de calmaria, ele traz mais paz. Para os momentos difíceis, um consolo. As suas águas me banham, me purificam. A espuma da água limpa meu rosto, meus braços. Boio sobre as águas que lentamente me levam em outra direção. Levanto-me. Volto ao ponto em que estava. Olho ao redor, não sei onde poderia chegar se nadasse em linha reta.

De dia, eu caminho na beirada da água sob o sol forte. Os pés vão pisando a areia molhada e o atrito com a água vai molhando as minhas canelas. A areia fica cada vez mais quente. O movimento de pessoas na praia naquele horário é intenso. São as crianças pulando, os vendedores falando alto, as músicas que saem da caixa de som, os amigos rindo e bebendo. É verão, é festa, é alegria.

Eu me contento mais com a calmaria. Com os sobreviventes que caminham pela praia ao fim de tarde, com os idosos que se sentem tranquilos a estar na praia sem tanto tormento e sol forte, com o por do sol que bate sobre as águas e faz as pessoas se aquietarem para contemplá-los. Aprecio os rituais em algumas praias brasileiras onde as pessoas aplaudem o sol se pondo.

O astro rei se despede e dá morada a lua que ilumina o mar, os amantes, as famílias. O mar cura, conecta e acalma. Seu espírito é único. Suas águas que banham grande parte do planeta, ora revoltas em momentos de ressaca, ora com pouca água nos movimentos da maré. O mar é meu companheiro.

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