O GALO E A PICOTA
Houve um tempo de despertador em forma de galo e picota. Não lembro bem quantos anos eu tinha. Meu pai surgiu com as duas aves em casa. As havia comprado em alguma feira do centro da cidade. Papai gostava mesmo de aves! Contava que caçava passarinhos quando menino. Depois os soltava de volta ao mundo. Era só pelo prazer de os ver de perto, pensava. Mas a história do galo e da picota veio muitos anos depois. Para quem não sabe, picota é como chamávamos o que hoje sei que leva o nome de galinha d’angola. Nome mais chique e nem por isso mais educado. Conto isso lembrando das vezes em que tive o sono cortado antes de o dia amanhecer por completo. Era quando os dois novos moradores chegavam perto da janela do meu quarto e começavam a emitir o bom dia em forma de cacarejos. Era o despertador naturalmente pontual. E infernal.
Ainda que houvesse um quintal farto onde poderiam correr, beliscar e descansar à vontade, era embaixo da minha janela que gostavam de fazer o espetáculo matutino. É que havia um portão entre o quintal e o jardim. Por lá passavam sem impedimento algum. Assim, às cinco e meia da manhã, pontualmente, ambos pareciam não ter o que fazer — e não tinham mesmo diante de uma vida boa daquelas — e se danavam a cacarejar. De um lado, a picota pintada de bolinhas pretas anunciava a fraqueza em voz rouca, repetitiva e fina com insistentes “tô fraco, tô fraco, tô fraco”. E o galo respondia com um sonoro, desperto e alongado “cococoricó”.
Cinco e meia da manhã! Eu, na idade de adolescente que acha que o mundo pode cair lá fora mas não quer perder um minuto de sono, odiava aquele despertador. Anunciei minha indignação. Ou vendiam ou eu daria um jeito nos indesejáveis despertadores.
Não sei o que meu pai fez com os pobres bichos. Mas certa manhã acordei sem o som vindo do jardim. Na hora do almoço desconfiei. O prato era frango ao molho pardo. Fiquei com fome. Não os queria como despertador; mas também me recusava a comer os coitados.
#Setex1