Giovanna Acioly
Comunidade da Escrita Afetuosa
4 min readJul 25, 2024

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O melhor do show!

Imagem da internet

Então, cara. A noite tava clara, com uma luazona no céu. Távamos andando abraçados, quando passamos por uma calçada lotada. Era o show de um comediante famoso no Insta. Ela já tinha visto uns vídeos dele e quis entrar. Só tinha cadeira na frente. Pagamos caro...De repente, me deu mó vontade de ir no banheiro. A gente tinha tomado uns chopps e a bexiga encheu bem no começo da apresentação. Fui correndo, pra não perder nada. Na volta, ainda fechando a calça, ouvi:

Meu nome é Patrícia.

Pensei: ferrou! Ele vai tirar sarro dela. Achei que ia falar do decote denunciando ombros largos…ou da voz grave entoada pelos degraus salientes no pescoço…coisas que ela sempre ouve. Cê sabe, né? Me apressei. Fechei o botão e comecei a descer as escadas ainda puxando a braguilha. De repente, ela disse:

Vim sozinha.

Fiquei confuso. Freei. Depois, pensei: tá querendo aliviar meu lado. Confiei. Sempre foi sagaz, ia se sair bem dessa! Fiquei na minha, assistindo lá de onde eu tava. Aí, o cara riu. Depois, falou:

Quer dizer que você veio sozinha, que não tem mesmo NEM UM AMIGO?!

E começou a tirar onda disso: Olha, só…a pessoa do lado se afastou…tipo eu não tenho ideia de quem é essa maluca…do outro lado, cadeira vazia. Kkkk! Ele debochava.

Doeu em mim. Antes falasse da aparência, o que todos comentam...ia ofender, mas é machucado antigo, já tem casca…cê me entende, né? Mas falar da solidão? Escancarar a dor que ninguém vê?! Ele enfiava o dedo na ferida aberta. Foi cruel! Eu precisava descer. Vai lá, Raul! Você tem que parar essa conversa! Mas, antes que eu me mexesse, ela emendou:

Eles nunca foram amigos de verdade.

Ãhn?! Meu queixo caiu. Você tá entregando de bandeja sua dor?! Acha que será compreendida? Que ganhará um abraço de um piadista? Quanta inocência, Patrícia…esses caras não perdoam! O que era pra ser graça, aos meus olhos virava desgraça. Uma multidão gargalhando do infortúnio de uma desconhecida na plateia. Minha cabeça pegava fogo…Vai lá, Raul! Defende sua garota. Acelerei o passo. Um pouco abaixo do meio da descida, ele soltou:

Kkkk! Desconfio dos caras que falam: Minha melhor amiga é minha mãe!

Caramba! Mesmo sem saber, o comediante dava um pontapé no meio do peito dela…foi difícil tirá-la de casa, há exatamente, e-xa-ta-men-te um mês, a mãe, seu único elo com o passado, foi chamada pelo Além. Agora, o cara diminuía essa relação! Minhas veias pulsaram! Irado, apontei o dedo em sua direção: Você bebe no boteco, dá uns tapinhas nas costas, conta umas pornografias e vai dormir acreditando que é assim que se faz amigos?! Quando o bicho pega, quem fica? Esperei um silêncio retumbante, mas as gargalhadas estavam tão altas que apagaram a potência do meu gesto.

De repente, ouvi a voz dela beeem miúda, como se, mesmo sem acreditar, tentasse se salvar:

Sou legal!

Pensei: Isso, gata, se valoriza, mostra quem você é! Conta pra ele do dia em que antes de entrar no meu carro disse para o pum que seguiu com o vento: Vai a pé porque quer! Kkkk! Já imaginava o túnel das gargalhadas ecoando a favor da minha garota. Ela desviando o sentido daquele show indecente…o comediante rindo com ela, ao invés de fazer dela a piada da noite. Mas, de repente, minha paz se quebrou:

Ah! Você. Que NÃO TEM NENHUM AMIGO, diz pra você mesma que é legal! Kkkkk!

Putz! Ali, ele calou ela de vez. Decretava a falência de suas palavras. Sufocava letra a letra. Mais uma vez, suas emoções eram devoradas pela indiferença. Dissesse o que dissesse, não conseguiria fugir da sina. Ela podia falar qualquer coisa. Ele ia ignorar. Ou deturpar. Queria mesmo era rir dela. Ganhar holofote às suas custas. O cara da cadeira ao lado de onde eu havia parado mostrava uma dentadura que realçava o coro de um barulho enlouquecedor. Reage! Cadê você, Patrícia?! Cadê a mina que fez de mim o rapper com riso na boca do estômago? Cadê a mina que invade meus pensamentos no trânsito, na chuva, com um humor que transformo em versos?…Cadê a mina…Olhei para a cadeira. Apenas um meio círculo aparecia. O topo da sua cabeça era o que restava da mina. Patrícia, com seus 1,80 se apequenava. Minha mina de coração gigante, se encolhia.

Foi além do meu limite! Segui apressadamente, engolindo dois degraus a cada passo. Estava tão descontrolado, que peguei impulso, como nas aulas de caratê. Minha mente fervia: Sobe no palco, Raul! Dá um de direita nesse cara. Toca o terror! Toca! Toca, Raul!

Mas antes de chegar, Patrícia já estava de pé, com a bolsa de palha no ombro. Me vendo no fim da fileira, encheu as narinas de confiança. De um jeito ingênuo, até meio bobo, como de alguém que está aprendendo um novo jeito de se defender, ou de debochar, ela apertou bem os olhos e estirou a língua pra ele, balançando a cabeça de um lado pra outro. Ele reagiu:

Se eu tivesse medo de cara feia, também não tinha amigo, Patrícia! Você precisa ver as caras dos meus brothers! A plateia se abriu.

Foi demais pra ela! Respirou fundo, levantou a saia florida, e pra surpresa de todos, balançou o pau: MAS DISSO VOCÊ TEM!

Nem preciso dizer que foi o melhor do show! O teatro veio abaixo, enquanto saíamos de mãos dadas. Do lado de fora, a luazona nos iluminava.

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