Vivian Ragazzi
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readJun 23, 2024

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O pintinho

Faltava pouco para as 10h quando a mãe anunciou que era hora de sair. Alta, vestindo um conjunto de tailleur verde-claro e bermuda até os joelhos, cabelos loiros e curtos, com batom fúcsia, saltos baixos, ela parecia muito bem arrumada para um sábado de manhã, quando normalmente se usam roupas mais casuais.

A filha estava na área de serviço do apartamento, brincando com um pintinho que ganhara dois meses antes numa feira. Filha única, a ave se tornou sua grande companheira. O pintinho, que não tinha nome, participava da vida da família. Ficava na sala assistindo novela. Apostava corrida. Dormia aninhado na mão do pai. Era o segundo filho.

Naquele dia ensolarado, quente, de início de verão, os raios de sol entravam pela janelinha da lavanderia. A menina acariciava o animal e respondeu para a mãe que já ia, mas precisava encher o recipiente de água do bichinho, que, na ausência da família, ficava dentro de uma caixa de papelão. E assim foi feito. Em seguida, foi ao banheiro, lavou as mãos, escovou os dentes, colocou seu aparelho extrabucal, calçou seus tênis bamba brancos e disse que estava pronta. Antes de abrirem a porta, resolveu dar uma olhadinha em seu melhor amigo.

A caixa de papelão estava molhada. O bichinho havia caído dentro da água e, magrinho, com sua penugem amarela encharcada, parecia ter se afogado. Em desespero, a menina implorou à mãe que o salvasse.

A mulher, bancária, inexperiente em salvamentos de galináceos, achou que o calor do sol poderia ajudar. Desceram pelo elevador com o pintinho nas mãos, a menina tentava aquecê-lo em um cobertorzinho improvisado. Sentadas num banco na área comum do prédio, mãe e filha desistiram do compromisso para salvar a vida da criaturinha.

Condôminos passavam, curiosos, enquanto a dupla se esmerava para que o pintinho voltasse. O coraçãozinho ainda batia, há vida, sabiam. Tremendo de frio, os olhinhos como dois risquinhos pretos. O biquinho, que tantas bicadinhas dava nos dedos, momentaneamente parado.

Uma das passantes era uma garotinha como ela, talvez um pouco mais nova, que havia se mudado para o edifício. Morena, de cabelos pretos e franja, se aproximou com o pai e pediu para ajudar. Ela falava bastante e emendava um assunto no outro. Usava uma bermuda de ciclista, camiseta e rabo de cavalo.

Sentou-se no meio das duas, a Mariane. O pai decidiu subir. O relógio já acusava meio-dia e as três se intercalavam nos cuidados com o animalzinho. Naquele fim dos anos 1980, ninguém pensou em levar o bicho de estimação ao veterinário, o que teria sido o mais racional a ser feito naquela situação.

A mãe, enfim, decretou que levaria o pequeno a uma loja próxima ao banco onde trabalhava, que vendia rações, gaiolas, canários, peixes e aquários. Quem sabe lá conseguiriam cuidar dele. Disse para a filha ficar junto com a nova amiga, que logo voltaria com boas notícias.

Quando voltou, estava de mãos vazias. Mariane já tinha ido para seu apartamento e a jovem esperava a matriarca, pacientemente, em casa. A mãe contou que o pintinho ia ficar internado e depois seguiria para uma fazenda, já que já estava ficando grande e ia virar um galo, conhecer uma galinha e ter seus próprios pintinhos. Não ia dar para continuar morando com eles. Ia ser melhor assim.

A menina chorou por dias. Uma semana depois, Mariane tocou a campainha do apartamento 62. Entrou. Carregava uma boneca quase do tamanho dela. Brincaram. A amiga disse que já tinha visto a menina mas tinha medo de chegar perto dela porque usava um freio de cavalo nos dentes. Mas agora não tinha mais medo.

O pintinho nunca saiu da loja de produtos de animais.

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Vivian Ragazzi
Comunidade da Escrita Afetuosa

mãe de gêmeos, jornalista e sagitariana (sim, acredito em signos)