O segredo da tesourinha

Juliana Deléo Rodrigues
Comunidade da Escrita Afetuosa
2 min readSep 29, 2023

Sozinha no hotel. Ontem, sabendo que hoje teria bastante tempo livre e que faria um calor absurdo, comprei um maiô. De manhã, usei com a etiqueta mesmo, coisa que não faço nunca. Poderia ter feito isso também à tarde, mas a necessidade de comprar uma tesourinha para cortar a tal etiqueta persistia. Certamente poderia ter pedido uma tesoura, ou mesmo uma faca, no hotel.

Tesourinha. Era o que eu queria. A farmácia a menos de um quarteirão. Então, fui, apesar dos quarenta graus nada primaveris.

Etiqueta cortada, voltei para a piscina. Dentro da água, pensando nos exercícios de escrita a fazer, no meu aniversário, na vida inteira, as lembranças foram chegando sem muita cerimônia.

A tesourinha, no diminutivo porque é dessas de cortar unha, me remeteu ao cotidiano com o meu pai. Ele sempre conferia se as unhas dos filhos estavam curtas. Ele as cortava desde que éramos bebês. Não era muito dado às tarefas paternais, que entendia como próprias da mãe, mas isso ele gostava de fazer.

Quando eu já era maior, passei a cortar as unhas dos pés dele. Uma forma de contato e cuidado que encontramos. As escassas expressões de afeto tornavam esses momentos de pedicure importantes.

Fui pensando tudo isso em meio a outras coisas. Sentimentos cozinhando em banho maria na água morna da piscina. Talvez ele tenha sido feliz, um pouco pelo menos, do jeito dele. A tristeza que sempre me invade quando penso no meu pai se espantou diante dessa ideia.

Com menos de cinquenta anos, ele se tornou obeso mórbido, deprimido também, arrisco dizer, e as complicações decorrentes o fizeram sofrer bastante. Esse era o peso que eu carregava junto com a dor de tê-lo perdido precocemente, com apenas 54 anos.

Foi uma parte da vida dele, é fato. Mas teve muito mais, alegrias pequenas como unhas cortadas e grandes conquistas. A última foi assistir a minha defesa de mestrado, que significou muito mais para ele que para mim, tenho certeza.

Tesourinha. Eu realmente precisava de uma. Ele foi feliz, bastante, muitas vezes. Que alívio.

Alvorada — módulo 1 — exercício 2

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