Olhos de Anjo

Inês Gariglio
Comunidade da Escrita Afetuosa
2 min readMay 31, 2024

Cor de rosa, feito de cetim. Lantejoulas e gregas douradas. A pala de casinha de abelha. Asas de penas de ganso brancas. Coroa de flores brancas com fios dourados. Luvas e sandálias brancas. Vestida de anjo.

A voz era forte, grave. Cantava alto, a plenos pulmões. Por isso, sempre a escolhida para colocar a coroa ou o véu. Ia aos ensaios nas tardes ensolaradas, quando aprendia letra e música que acompanhariam o gesto. Ensaiava na varanda da pequena casinha da organizadora. A festa acontecia aos domingos de maio.

Além de aprender o canto, havia a preparação dos cartuchos de papel de seda coloridos. Dentro, os amendoins açucarados. Eram arrumados dentro de uma cesta que chegara em casa com presentes para meu pai. Verdes, azuis, vermelhos cirandavam no fundo de vime. Aguardados como prêmios por seu sabor e aroma, eram distribuídos por minha mãe ao final.

Tudo pronto! Hora de sentir o frio na barriga. O lugar na fila indicava a importância do atavio a ser colocado na linda mulher — palmas, véu e coroa ficavam aos pés da inerte imagem no topo de uma escadaria montada perto do altar. De lá de cima, a dama gélida parecia olhar para um horizonte inexistente para além das paredes góticas do templo.

Na fila. A nave principal da igreja parecia uma enorme avenida aos meus olhos de criança. Evento social importante para os moradores do bairro, a coroação sempre contava com público numeroso. Naquele tempo, a inocência ainda morava no ar que respirávamos. Os pais das meninas-anjos se orgulhavam ao ver suas pequenas brilharem aos pés da Virgem. Aplausos e cantos alimentavam o Sagrado.

Lá ia eu, testando os fios do par de luvas, com receio que meus dedos grudassem na pequena coroa de pedrinhas brilhantes. Não sentia outros medos. Só a emoção de ser vista, apreciada. Nos dias comuns era invisível.

A câmera capturou o olhar. Revelou a incerteza. Desvelou a insegurança da menina-anjo que ainda habita em mim.

Inês Gariglio Maiex4

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