Para todas as mulheres que moram dentro de mim

Rita Claudia Jacintho
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMar 25, 2024

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se existe uma parte de mim que sempre gostei, são as minhas pernas

longas

sempre me levaram para passear

por aí

pela vida

corria muito

até São Silvestre já me viu…

por muito tempo pensei que correr era voar um pouco

gostava disso

com o tempo as coisas mudaram

uma dorzinha aqui

um estalo ali

dá-lhe fisioterapia e vamos seguindo

corrida virou caminhada

depois veio aquele peso nas pernas que me reduziam o ritmo

quase me faziam parar

mas não deixei

segui firme,

teimosa

mas como doíam…

até que Dra. Carolina garantiu:

-Em um mês você estará nova em folha

vamos operar

são só varizes

internas

tem um jeito aqui rápido

bem moderno

a vida ficará mais leve

acredite em mim…

Acreditei!

animada que estava com a ideia de seguir sem dores, fui

me entreguei com a santa ingenuidade dos que não sabem de nada e acreditam nos médicos,

segui para o hospital naquele fim de janeiro

tudo só começava

a cirurgia atrasou horas

e naquela tarde da cura eu, a louca aqui, que nunca quer incomodar as pessoas, só pensava uma coisa: voltar logo para o quarto…

(liberar Cassinha e meu amor dessa vigília longa e cansativa)

mas para retornar ao quarto minhas pernas precisavam acordar, voltar à vida… (eu tinha tomado aquela anestesia, rack)

imagine só… em vez de deixar o barco correr, esperar a anestesia passar, eu só pensava nos dois me esperando…e o pior… acreditando mesmo que controlamos alguma coisa…

vou poupar vocês de todos os detalhes

foram muitos

dias quentes vieram

pernas presas nas meias apertadas

hematomas por todos os lados

tudo doía

tanto, que eu nem conseguia tocar minhas pernas

olhava com cuidado

fiquei pensando que fazemos exatamente assim com nossas dores mais profundas

no início não as encaramos

só depois

com o tempo

e bem devagarinho

voltando para a cirurgia

quem foi que disse mesmo que em um mês estaria boa?

pois é… sabe aquela santa ingenuidade …

outra coisa me acontecia, durante a recuperação, uma turma não saia da minha cabeça:

minha mãe, avós, tias, primas, irmãs

o Mulherio todo da minha vida

pensava nelas sem parar

como é que faziam para passar por suas dores? seus momentos?

ora parto

cirurgias

cheias de crianças para cuidar

partidas em tantos pedaços

como fazia nos tempos de suas recuperações?

imaginei que todos esses resguardos que inventaram ao longo das nossas vidas eram para isso mesmo

protegê-las

do tempo

de tudo

delas mesmas

dois meses depois daquela tarde de janeiro, sigo aqui curando os doloridos das pernas

pela cara deles, ficarão comigo por algum tempo

continuo pensando: não há nada tão fácil assim

como acreditar que te cortam, consertam coisinhas e rapidamente ficamos prontas…

tem um tempo para tudo

e de cada coisa

o da cura

da cicatrização

e depois dos novos caminhos que se abrem dentro da gente

tenho conversado com minhas pernas todo dia

e claro um pouquinho também com as mulheres que levo dentro de mim.

para elas também, assim como um curativo atrasado, passei a deixar um vasinho de flores no meu altar

todo dia olho para lá e converso

a ideia é dizer assim para esse mulherio:

as carrego bem no peito

aqui

aprendi a andar com vocês

seguimos fortes

mesmo e inclusive com todas essas dores do dentro e fora de mim

Marex3

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