Para todas as mulheres que moram dentro de mim
se existe uma parte de mim que sempre gostei, são as minhas pernas
longas
sempre me levaram para passear
por aí
pela vida
corria muito
até São Silvestre já me viu…
por muito tempo pensei que correr era voar um pouco
gostava disso
com o tempo as coisas mudaram
uma dorzinha aqui
um estalo ali
dá-lhe fisioterapia e vamos seguindo
corrida virou caminhada
depois veio aquele peso nas pernas que me reduziam o ritmo
quase me faziam parar
mas não deixei
segui firme,
teimosa
mas como doíam…
até que Dra. Carolina garantiu:
-Em um mês você estará nova em folha
vamos operar
são só varizes
internas
tem um jeito aqui rápido
bem moderno
a vida ficará mais leve
acredite em mim…
Acreditei!
animada que estava com a ideia de seguir sem dores, fui
me entreguei com a santa ingenuidade dos que não sabem de nada e acreditam nos médicos,
segui para o hospital naquele fim de janeiro
tudo só começava
a cirurgia atrasou horas
e naquela tarde da cura eu, a louca aqui, que nunca quer incomodar as pessoas, só pensava uma coisa: voltar logo para o quarto…
(liberar Cassinha e meu amor dessa vigília longa e cansativa)
mas para retornar ao quarto minhas pernas precisavam acordar, voltar à vida… (eu tinha tomado aquela anestesia, rack)
imagine só… em vez de deixar o barco correr, esperar a anestesia passar, eu só pensava nos dois me esperando…e o pior… acreditando mesmo que controlamos alguma coisa…
vou poupar vocês de todos os detalhes
foram muitos
dias quentes vieram
pernas presas nas meias apertadas
hematomas por todos os lados
tudo doía
tanto, que eu nem conseguia tocar minhas pernas
olhava com cuidado
fiquei pensando que fazemos exatamente assim com nossas dores mais profundas
no início não as encaramos
só depois
com o tempo
e bem devagarinho
voltando para a cirurgia
quem foi que disse mesmo que em um mês estaria boa?
pois é… sabe aquela santa ingenuidade …
outra coisa me acontecia, durante a recuperação, uma turma não saia da minha cabeça:
minha mãe, avós, tias, primas, irmãs
o Mulherio todo da minha vida
pensava nelas sem parar
como é que faziam para passar por suas dores? seus momentos?
ora parto
cirurgias
cheias de crianças para cuidar
partidas em tantos pedaços
como fazia nos tempos de suas recuperações?
imaginei que todos esses resguardos que inventaram ao longo das nossas vidas eram para isso mesmo
protegê-las
do tempo
de tudo
delas mesmas
dois meses depois daquela tarde de janeiro, sigo aqui curando os doloridos das pernas
pela cara deles, ficarão comigo por algum tempo
continuo pensando: não há nada tão fácil assim
como acreditar que te cortam, consertam coisinhas e rapidamente ficamos prontas…
tem um tempo para tudo
e de cada coisa
o da cura
da cicatrização
e depois dos novos caminhos que se abrem dentro da gente
tenho conversado com minhas pernas todo dia
e claro um pouquinho também com as mulheres que levo dentro de mim.
para elas também, assim como um curativo atrasado, passei a deixar um vasinho de flores no meu altar
todo dia olho para lá e converso
a ideia é dizer assim para esse mulherio:
as carrego bem no peito
aqui
aprendi a andar com vocês
seguimos fortes
mesmo e inclusive com todas essas dores do dentro e fora de mim
Marex3