Ponto de vista

Era a primeira vez que tinha uma cozinha daquelas. Uma de verdade, com azulejos, pia, armários. E de quebra vinha com um fogão à botijão. Estava enferrujado e gordurento, as paredes encardidas, os rejuntes meio enlodados, mas nada que um pouco de água e sabão em pó, um pacote de Bombril, um pote de sapólio, água sanitária, bicarbonato, tira-limo e muito braço pra esfregar não resolvessem. As panelas de sempre, areadas à exaustão, os paninhos bordados ganhados da antiga vizinha sempre branquinhos, a louça antiga (e um tanto lascada) da dona Efigênia e as bacias, tigelas, potes e pratos ganhos do chá de panela que as amigas da igreja fizeram completavam o enxoval. Depois de um inteiro de faxina agora tinha uma cozinha de azulejos brilhando, com um fogão tinindo, dessas de novela. Tudo tinha o seu lugar, e ainda cabia mais coisa.

- Quem sabe com o 13º a tal da Air Fryer não chegava pro natal (e as dez parcelas ficam pro ano que vem)?

Era a primeira vez que tinha uma cozinha daquelas, com um fogão à botijão enferrujado e gordurento, as paredes encardidas, os rejuntes meio enlodados. Não sabia nem por onde começar a limpar aquilo, se ainda tivesse algum dinheiro chamava a Sonia para uma faxina. Ela era tão boazinha que com certeza ia cobrar meia diária, pra aquela casa minúscula não precisa de um dia inteiro. Não tem nem armário com porta, é tudo de alvenaria, não tem nenhum planejado. Não é à toa que não cabe nada, pensava… mas também, pra essa meia dúzia de panelas velhas e potes de plásticos de 1,99 que a antiga inquilina deixou tá de bom tamanho. Pelo menos tem esse ¼ de conjunto de jantar inglês que ela conseguiu comprar na feira da praça XV, chorando muito com o vendedor. Ele ficou impressionado com aquela conversa e acreditou que era pro cenário da sala da ricaça da próxima novela das nove. A lábia de produtora de arte, refinada em anos de publicidade e cinema nacional serviram bem nessa hora.

- Não tem a menor chance de chamar alguém pra esse muquifo, quer dizer, só dá pra chamar o ifood.