Presença

Lorena Andrade
Comunidade da Escrita Afetuosa
4 min readJun 30, 2024

Nunca pensei que eu pudesse enxergar o Tempo. Quando ele não escorre pela fugacidade dos dias, consigo senti-lo. Mas vê-lo, de carne e osso, não me parecia muito possível. Tive que ir na quina do mapa, lá onde a Bahia quase faz a curva. Onde quarto de lua diz mais que palavra e terra é tratada como mãe de criação. Cheguei com uma sacola miúda e uma porção de ignorâncias — silêncios que acumulo na vida pelos saberes que ainda não encontrei.

Éramos quatro colegas e três dias de trabalho muito bem planejados — início, meio e fim. Descobrimos, porém, que a vida também acontece antes do começo. Dessa vez, um velório nos chamava. Um companheiro amado por muitos e desconhecido por mim havia se despedido na noite anterior. Precisávamos retribuir seu adeus de corpo presente antes da nossa atividade. Viajamos de Salvador a Vitória da Conquista de ônibus durante a madrugada e, de lá, seguimos estrada de chão adentro. No meio do caminho, sem saber muito bem onde estávamos, começamos a perguntar aqui e acolá quantos quilômetros nos separavam de Belo Campo, a sede da nossa despedida. Uns diziam sete, outros vinte. A noção de distância não era algo muito bem consensuado por ali. Mas seguimos em frente, o que parece ser uma boa decisão sempre que não se sabe muito bem por onde ir.

Um pequeno amontoado de pessoas na entrada de uma casa amarela simples e charmosa anunciava que havíamos chegado ao lugar certo. Cadeiras e bancos colocados na varanda organizavam as cheganças. Um jardim com plantas de todas as cores arrodeava o terreno como se abraçasse a casa, que naquele dia abrigava o corpo delicadamente protegido no caixão. Um jovem rapaz entrou trazendo uma coroa de flores enviada por alguém em condolências. Se silêncio houvesse, também se poderia ouvir as próprias flores plantadas naquela morada prestando sua homenagem.

Sentei num dos bancos da entrada e ali fiquei sem saber muito bem o que fazer. Mas “olhar o movimento”, como diz minha vó, é sempre um bom passatempo, ainda mais quando não se conhece ninguém. Não demorou muito e minha atenção foi capturada por dois sujeitos — gente distinta, no linguajar do interior. Um senhor negro, de pele retinta, cheio de agasalhos e meia por baixo da sandália se sentava bem ao lado da porta. Trazia uma boina cinza na cabeça e uma bengala de madeira apoiada na mão direita. A barba branca por fazer escondia parte do rosto que, embora marcado pela vida, não aparentava cansaço. Literalmente, era um Preto Velho guardando a entrada daquela morada onde se velava o corpo. Não me pareceu um acaso.

Metros à frente dele, um outro senhor, igualmente retinto, sentava numa das cadeiras dispostas na entrada. O que primeiro chamou minha atenção foi sua camisa, de um tecido roxo bem escuro e bem passado, que destoava dos tons e caimentos das vestimentas dos demais. Ele, junto às flores do jardim, trazia as cores daquele lugar. O corpo bem magro destacava a retidão na postura e o cruzar das pernas. O chapéu de aba reta na cabeça e as mãos apoiadas delicadamente sobre os joelhos completavam a aparência charmosa daquela figura, que parecia fazer pose para um retrato.

Ambos tinham um olhar que parecia não focar em nada, mas enxergar tudo. Vi naqueles olhos, naqueles rostos que pouco se mexiam, a sabedoria de uma vida inteira. Certamente de muitas. Sentados longe um do outro, diametralmente opostos, pareciam querer equilibrar o mundo com o peso de suas presenças. O vai e vem de pessoas, no entanto, não parecia notá-los. Desconfiei se outros também os viam. Mas definitivamente aquela matéria preenchia um espaço físico. Pelo menos naquele instante. Eles tinham ali um papel a cumprir.

De onde me sentava, fechei um triângulo entre nós três. Revezava meu olhar para admirá-los, como se estivesse numa partida de tênis. Diferente de um jogo, eles não faziam nenhum movimento — malmente esboçavam uma reação. Hipnotizada por aqueles corpos que reluziam pela placidez, senti o mundo andar em câmera lenta quando os encarava. Um sopro de consciência sussurrou em meu ouvido. Então era assim o Tempo, sua imagem e semelhança?

Como guardiões da eternidade, aquelas figuras carregavam no semblante a infinitude dos dias. Não havia começo nem fim para sua existência — pareciam ser o perfeito amálgama entre o ser e o estar. Quantas vidas já não tinham assistido nascer, morrer e existir em meio a este caminho? Quantas despedidas já não haviam presenciado, quantos corpos viram se cruzar na dança de lamentos como naquele exato instante? O roteiro daquela manhã lhes parecia conhecido. Apenas os personagens mudavam. Eles não.

Encarar o Tempo teve o poder de sublimar minhas certezas. Eu era apenas um piscar de olhos diante da imensidão com a qual me deparava. Mas também fui tomada por um afagar de vento, uma pétala de serenidade que deles se desprendeu e voou até meu colo. Como fruta no pé, provei o gosto das coisas como elas são. Do passo no seu ritmo, da travessia como um leve planar. Talvez seja este o significado da presença — estar inteiro sem ter medo de se dissolver e preencher tudo o que existe. Senti que minha sacola de ignorâncias ganhava mais peso. Na ausência das palavras sequestradas pelo encantamento, descobri mais um abismo do que não sei. O que não podia me deixar mais feliz, pois é assim que reparo que estou vivendo.

Minha permanência ali chegou ao fim. Junto a meus colegas, nos despedimos com um olhar carinhoso a quem fomos cruzando o caminho. Os senhores permaneceram imóveis como sempre estiveram. Não é preciso dar adeus a quem se faz onipresente. Pegamos a estrada rumo a um município chamado Encruzilhada. Sinto, porém, que eu tinha acabado de atravessar a minha.

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