Quando acaba a combustível

Gabi Canhete
Comunidade da Escrita Afetuosa
4 min readMar 24, 2023

Sai de casa para pegar as crianças na aula. Liguei o carro e me dei conta que precisava abastecer. Olhei o relógio. Calculei o tempo. Se parasse para completar o combustível, chegaria atrasada na escola. Preferi seguir. Não gosto de me atrasar para pegá-los. E não é só questão de não gostar. Tenho um certo trauma disso. E explico o porquê.

Quando era criança, fui esquecida na escola. Devia ter uns 5 anos. Estudava no “pré” ainda. Minha mãe estava trabalhando e quem ia me pegar era minha irmã mais velha. E ela esqueceu. Por algum motivo ela esqueceu. Lembro das crianças todas indo embora. Do portão fechando. Das professoras conversando entre si. Dos olhares para mim. Do dia escurecendo.

Na escola tinha um caseiro. Fiquei com ele ali. Esperando em uma casinha, que parecia tão grande quanto o meu medo da solidão. Quando minha mãe chegou já estava de noitinha. Não lembro mais muito bem do que aconteceu depois, de como foi a volta para a casa. Mas até hoje, toda vez que tenho que esperar alguém por um tempo maior do que o previsto, meu coração dispara. Palpita. É inevitável. Como um gatilho que desperta em meu corpo a sensação de abandono. Uma cicatriz profunda que carrego, que mas que ninguém vê, pois está dentro de mim.

Cheguei na escola com o tanque vazio, mas com folga no horário. Peguei o Miguel, o filho mais novo, que veio correndo, como sempre vem, carregando a mochila que é quase do tamanho dele. Demos aquele abraço gostoso, apressado, com beijo suado e ficamos ali no pátio esperando o Joaquim sair. E lá veio ele. Tão grande, tão mocinho e cheio de estilo com seus 8 anos de idade. Já não quer mais ser tão beijado, mas ainda assim, me recebeu de forma carinhosa.

“Bora para casa?”. Entramos no carro, dei partida. E o carro não ligou. Tentei mais uma, duas, três vezes e nada. “É Gabi, o combustível acabou”. Fiquei um minuto pensando no que fazer, dialogando comigo mesma. Tentando achar uma outra hipótese que explicasse o não funcionamento do motor.

Não queria acreditar que tinha cometido esse deslize. Liguei para o João, meu marido, contando o que aconteceu. Eu sempre começo a rir quando estou nervosa e dessa vez não foi diferente. O cansaço de um dia cheio e o excesso de preocupações, fez a falta de álcool no carro, parecer um problema maior. Tentei explicar o porquê não tinha colocado. Falar sobre a porta que o medo do atraso abria em mim. Mas desligamos de forma ríspida antes de que a conversa evoluísse.

A melhor escolha naquele momento, foi deixar o carro ali, pedir um uber, ir para casa com as crianças e resolver depois. Quando minha carona chegou, uma mulher na faixa dos 60 anos é quem dirigia o carro. Foi simpática, atenciosa. Puxou assunto. Eu estava quieta, chateada. Não correspondia tanto a conversa. Até que aos poucos, ela foi me convidando a sair de mim e falar.

Quase chegando em casa, é que contei para ela que havia acabado a gasolina do carro. Jacira — era seu nome, sorrindo, encostou o carro na guia e disse que se eu estivesse com sorte, ela ia achar um galão no porta malas. Dai poderia parar num posto para encher e me ajudava a resolver essa questão.

Ela desceu, e ali estava o bendito galão. Paramos no posto mais próximo e voltamos para onde ela havia me pegado. No trajeto, foi dirigindo devagar, me dizendo o quanto ela aprendeu a se virar na vida. Foi me dando dicas de como colocar o álcool quando chegasse lá, mas deixou claro que eu não precisava me preocupar pois ela faria isso para mim.

Perguntei como a gente ia fazer para transferir o álcool do galão para o reservatório do carro e ela disse que era só cortar uma garrafa pet e fazer um funil. “Fica tranquila. Eu tenho tudo isso aqui”, afinal, era uma mulher dirigindo na rua até as 3h da manhã. “Ando preparada para tudo”, me contou.

No caminho, além de dicas de abastecimento, me falou sobre o amor e autoconfiança. Sobre a coragem de encarar as próprias sombras. Da força que existe em uma mulher que sabe o que quer. Das coisas que já viveu, do quanto se fortaleceu.

Chegamos de volta na escola e ela fez questão de colocar o combustível no carro para mim, com a ajuda do Joaquim. “Observe e aprenda, para caso precise fazer isso de novo”.

E com a mesma rapidez com que chegou, ela se foi. Nos despedimos e ela se foi. Mas deixou sua marca em mim. Sem saber, Jacira pode me ajudar a olhar com mais amor para essa ferida antiga. E pude entender que, de agora em diante, posso seguir. Sem pressa. Mas sem atrasos. Sabendo que tenho tudo que preciso para dirigir minha própria vida. No meu ritmo.

Desafio 1 / Março — Uma história vivida

--

--

Gabi Canhete
Comunidade da Escrita Afetuosa

Escrevo para por a casa em ordem. Seja bem vinda(o) ao Que Habita Em Mim.