Giovanna Acioly
Comunidade da Escrita Afetuosa
2 min readJun 18, 2024

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Rastros em uma manhã

Imagem do site Adobe Stock

Tal qual um cão farejador, de longe, foi sacudida por aquele cheiro. Na ponta dos pés, se aproximou. Não queria ser vista. Segurou a respiração como quem suspende a própria existência. Espiou pela porta entreaberta.

sem vida

Embora não houvesse mais ninguém ali, os azulejos brancos com respingos rubros denunciavam o ocorrido. Sobre a bancada, a faca amolada. O pequeno tapete de piso também revelava rastros do líquido encarnado.

Percebeu que tudo havia sido planejado com antecedência. Meticulosamente. Na calada das primeiras horas matinais, a pele fora arrancada. Olhou novamente a faca. Afiada. Ao lado, o equipamento com lâminas vorazes, entre as quais o que sobrou em carne havia sido triturado. Enquanto um barulho perturbador inundava cada canto do apartamento, o contorno virava uma massa gosmenta. Ela não sabia como não havia acordado. Provavelmente, ele fechara a porta. Não queria testemunhas. Era um homem discreto, cujas excentricidades ainda não lhe eram palpáveis.

Não teve tempo para se livrar das marcas indeléveis do feito, imaginou. O flagra veio minutos depois da sua ausência. Mas veio. Ela sabia de tudo. Naquelas mãos, o viço fora reduzido a fluido. Para depois ser jogado ao fogo, que ainda flamejava. Decidiu que sairia de cena como se nunca tivesse entrado. Sem questionamentos. Daria espaço para que ele desanuviasse seu excesso de imaginação. Ou encaixasse os fatos no mesmo roteiro que vislumbrava.

Ao entrar no quarto, ouviu a chave girar na fechadura. Se atentou aos rangidos dos tacos de madeira em sua direção. Correu para o banheiro. Mal havia aberto a torneira, um grito. Nããão! Ele soltou no mesmo tempo em que o corpo dela reagia ao toque do objeto frio, metálico, sobre seu braço. O chão se cobriu de vermelho. O líquido escorria pela roupa do marido.

Não estava transtornado. Desolado lhe cairia melhor. Mirou-a, somando às suas as interrogações que se formavam na íris da esposa. Ambos se renderam ao silêncio ao constatarem, na mão direita do homem, uma colher que, heroicamente, ainda segurava no centro restos do líquido afogueado.

Vagarosamente, colocou a mão sobre seus olhos. Abre a boca. Inerte, ela obedeceu. Que tal? Enquanto sugava o fluido, encostou seus lábios nos dele, lambuzando-o com a saliva carmim. Sem dúvida, o melhor molho de tomate que comi na vida!

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