Relógio de Dalí

Inês Gariglio
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readJun 10, 2024
Photo by Camila Damásio on Unsplash

O tempo escorria como os relógios de Dalí. Preguiçoso, fluido, desmanchando como cobertura de chocolate ao sol. Silêncio. Uma quentura como a das ruas de Sevilha. O sol já iniciava sua meia-jornada para o ocaso.

Ela moveu os olhos. Pálpebras pesadas de sono e do prazer há pouco saboreado. No seu campo de visão, os cabelos encaracolados, louros, ainda úmidos. Ele dormia. Podia sentir pelo ritmo da respiração, pela mão largada no seu seio nu, pela maneira como sua coxa se encostava na dela. Era um corpo forte, grande, potente, com as marcas da virilidade de seu dono. Sua pele era alva, suave ao toque como lenço de seda, com cheiro e textura que a faziam querer acarinhar, pressionar boca e nariz, levar para dentro de si aquele que era seu objeto de amor e paixão. Quase que por vício, estendeu a mão para certificar-se do calor que lhe aquecia as entranhas e que lhe assegurava estar viva, essência brilhante, fogo interno aceso. Suspirou, entregando-se ao prazer de sentir o ar escapando pelas narinas dilatadas. Corpo livre. Alma solta. Sua boca desenhou um sorriso.

Moveu o corpo lentamente, lânguida. Escorregou, como os relógios de Dalí, para fora da cama. O corpo nú apreciava a brisa quente que soprava pelas portas da varanda, arrepiando-lhe os pelos. Avistava o jardim exuberante, comum aos trópicos. Folhas de verde intenso, espalmadas como mãos enormes, seguiam a coreografia imposta pelo vento. Sussurravam à sua passagem. O movimento gerava fagulhas de luz oblíqua, vinda de um céu alto e amplo. Deixou-se ficar. O tempo seguia-lhe os passos com pés descalços. Nenhum dos dois, nem ela nem o tempo, desejava produzir qualquer som. Parecia-lhes que, para além do vento, qualquer ruído poderia chamar a atenção nefasta de Cronos.

Sobre a mesa, os copos ainda rescendiam ao vinho degustado, frutas, água fresca na jarra. Tomou um, dois, três goles do líquido translúcido. Sentou-se à mesa, com o olhar penetrando o quarto. Enamorou-se, mais uma vez, daquele corpo sobre a cama. Reparou cada detalhe, acreditando que se o fizesse com muita atenção, a imagem ficaria estampada na memória, como cicatriz, como tatuagem. Naquele instante, teve a certeza de que esse tipo de olhar nunca mais poderia se repetir. Ele seria único, como o seu primeiro beijo, como sua primeira dor. Completamente presente no ato de ali estar, almejava dissolver-se nos átomos daquele momento e ali permanecer até o fim dos tempos. Ah!, a impermanência da Roda a girar. Aranha tecendo fios em teias gigantescas. As Moiras comandando a vida dos mortais. O poder enorme dos odores. Quando criança, a avó lhe ensinara o prazer dos aromas. Jambo, pitanga, bananas maduras, abacaxis. As ervas do sabonete. Os cabelos penteados com água de alfazema. Aprendeu a amar perfumes. A manga e a faca. A lâmina correu no invisível espaço entre casca e polpa. A maciez do corte denunciava o perfeito estado de maturação da fruta. Fez escorrer, delicadamente, os sumos.

As mãos se molharam nos sucos e gotas amarelas marcavam o prato azul, como constelação formada ao acaso. Como as Plêiades, sete irmãs encantadas sob a forma de estrelas. Os nacos de polpa foram feitos para levar à língua, à pressão dos dentes, aos recantos da memória, aos labirintos de registros do prazer. Lavou as mãos depois de lamber os dedos. Voltou, ainda que por um átimo, à criança que fôra antes dos relógios de Dalí com os pés entregues ao afago da grama macia e quente. Afundou os dedos nas lâminas verdes e macias, sentiu as raízes, a terra, a umidade perto da torneira. O sol, agora quase em declínio, lambeu-lhe as costas nuas. Espreguiçou-se como gato.

Dirigiu-se lentamente ao quarto. Sentou-se na cama. Beijou a boca entreaberta. As mãos dele reagiram na busca de sua cintura. Acariciaram costas, nádegas e coxas. Os olhos se abriram, ainda pertencentes ao mundo dos sonhos. A boca se mexeu. Preparou-se para outro beijo, mais outro e outro mais. O contato das peles abriu-se em leque para o desejo. Queimava. Ardia. Ela mordeu um filete de manga e beijou com língua, dentes e sumo. Ele a acompanhou no ato e na intensidade. Pediu mais. Eram gesto e sabor. Desfrutaram.

Inês Gariglio Junex2

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