Só a lua viu

Inês Gariglio
Comunidade da Escrita Afetuosa
4 min readMay 20, 2024
Photo by Michael Niessl on Unsplash

Acorda, raio!

Olha o barco!

Vem me ajudar! A maré não nos espera!

(a voz saía esganiçada. Demostrava a profunda impaciência que ele sentia todas as vezes que olhava para aquele corpo franzino como ninguém deveria ser.)

Vem, praga dos infernos!

Carrega a sacola! Pega o santo! Chama a cadela!

(saía apressadamente da casa onde viviam ele e o que chamava de trastes inúteis — mulher e filho. Ainda havia estrelas no céu, mas não parou para observá-las. Também não reparou que a lua era outra, como se, de sangue, tivesse se vestido.)

Você não ouviu o que eu disse? Se mexe, coisa feia dos diabos!

(o menino nada. Inerte e frágil, restava no canto de um cômodo da miserável palhoça. O pai, cozido pela desesperança, sacudia o corpo cujo nome não se lembrava. Só o chamava de traste. Como não teve resposta, pegou o pequeno fardo como se carregasse um saco quase vazio de qualquer coisa. Pôs-se a caminho do rio. Não reparou a temperatura e muito menos a consistência daquela materialidade inanimada. Não pôs reparo no movimento sinuoso das raízes no mangue. Não ouviu a intempestiva estridência das aves. Não se deu conta da estrangeira bruma que cobria o braço do rio.

Jogou o corpo, a rede, o samburá. Chamou a Chica, o único ser que recebia sua atenção. Ela se acomodou no banco. Ele não percebeu o silêncio de bicho acuado da Chica. Também entrou no barco como fazia desde que, para o mundo, havia aberto os olhos e dado passos autônomos. Não deu notícia das inusitadas luzes azuladas que piscavam ao redor como se o espaço houvesse sido preenchido por hordas de pirilampos flamejantes. Chica observava tudo com as orelhas caídas.)

Traste, se mexe! Arruma o samburá! Põe o Santo no nicho! Faz alguma coisa. Você não vai querer sentir o peso da minha mão, vai?

(o menino, imóvel. O pai se aproxima com os olhos esbugalhados pela raiva dedicada àquela vida, àquela realidade deplorável. Levanta o braço para desferir um golpe certeiro. Fecha a mão para torná-lo mais efetivo. Chica uiva. Ele pára e se dá conta do entorno. Alí, de pé, no barco dançante pelo efeito das marolas. Frio e silêncio. Luzes fantasmagóricas. Bruma densa. Olha o corpo do menino. Sua boca se abre em espanto e incredulidade. Seu corpo se arrepia pelo medo. Os pelos da nuca se eriçam. Tudo fica em suspenso. O tempo deixa de correr como rio inexorável.

Seres com nadadeiras esvoaçantes exercitam quase-voos ao redor da embarcação. Os mangues-branco e vermelho abrem suas pequenas copas. Forma-se um santuário. Apesar da luz de alvorecer, ele pode ver claramente. Tenta agarrar o Santo, mas não consegue mover nenhum músculo. Chica silencia com olhos fixos no menino.

O corpo, pranteado pelas lágrimas da lua — agora não mais vermelha, se metamorfoseava. Mudava no intervalo do tempo, na acomodação do espaço mágico que se abrira. Ele, o menino e seu corpo, se desmanchavam assim, feito castelo de areia pela ação do mar, como sedimentos do deserto carregados pelos ventos. Sua pele, antes tostada pelas brincadeiras à beira das águas, adquiria nuances prateadas, irisadas pela lunar radiação que as escamas recém-adquiridas refletiam. Os braços se emendavam ao tronco. Os pés transgrediam a forma. Em seus lugares, nadadeiras douradas, brilhantes como Vênus no céu da madrugada límpida. Nariz e boca, agora, guelras. Os olhos do menino olharam para os do homem. Fixaram as pupilas no rosto que trazia o rictus do desgosto, do desafeto, do desdém. E foram se transfixando ao mesmo tempo em que guardaram na memória a imagem do homem, agora totalmente impotente.

O menino-peixe-ser-onírico se esgueirou pela borda do barco. Buscava o aconchego das águas, agora tépidas, para a continuação do respirar. Sob o olhar atônito do pai e da cumplicidade de Chica, ganhou a fluidez das águas de Odoyá. Os outros peixes-seres-oníricos rodearam o recente transmorfo. (Ah…) Experimentou o acolhimento. Pela primeira vez.

Antes de seguir para a nova rota, traçada nos oceanos infinitos, olhou para trás. O bote havia se empoleirado nas hastes aladas do mangue-branco com raízes fincadas na vizinhança do mar de Iemanjá. Da nova posição, o peixe-ser-onírico-um-dia-menino viu o corpo do homem criando raízes no mangue. Os braços, os retorcidos ramos, os cabelos, a copa de folhas verdes a brilhar no sol recém-nascido. Viu os caranguejos subindo lentamente sobre o que era a barriga daquele ex-homem. Eles escarravam suas dores e memórias de perseguição nos orifícios do corpo transmutado. Seus olhos se encontraram — conforto em um par, espanto e impotência em outro.

E o peixe-ser-onírico que, na noite que antecipa o dia, foi um menino chamado João, esqueceu a cena, esqueceu que o novo mangue-branco foi um homem a quem chamou de pai. Voltou ao barco. Buscou o Santo com a boca. Prendeu-o com os dentes potentes. Foi espalhando a imagem triturada pelas franjas do rio. Deixava a marca, o testemunho da sua libertação e viagem; pequenos indícios para a mulher a que chamou de mãe em sua outra vida.

Olhou o céu pela derradeira vez. A lua, ainda que timidamente, prateava as reminiscências da noite. Ganhou o mar. Não mais fixou a atenção no que deixou de existir para ele. Seguia nacarado pela lua. Pela fresta dos olhos viu Chica saltando nas areias brancas. Se despedia dele. Comemorava a dupla libertação.)

Inês Gariglio Maiex3

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