Sabenças do coração

Sonia Marques
Comunidade da Escrita Afetuosa
5 min readOct 23, 2023

Alvoradamod2ex3 — Comunidade da Escrita Afetuosa

fonte: montagem da autora, a partir da imagem do documentário “Flor do Moinho”
"Quandu eu morrê, não queru choru. 
Queru todu mundu alegri.
Cumpri a minha missão aqui na terra."

Quem é essa pessoa? Quem é esta mulher que afirma com certeza e propriedade, que pode morrer em paz? Consigo e com os demais.

Aos dois dias do mês de fevereiro de 1938, nascia Florentina Pereira dos Santos. “Muitus irmão pra frente e pra trás”, como diz. Lá para as bandas de Goiás. Chapada dos Veadeiros, lugar de beleza exuberante, vegetação diversificada, montanhas, cachoeiras, águas puras e curativas. Vive num povoado quilombola, chamado Moinho, cerca de 12 km da cidade de Alto Paraíso. Cercada de familiares, vizinhos, amigos, amigas; algumas de longa data.

“Eu dedicu mais é Dona Flor.” Justificando como gosta de ser chamada. “É mais bunitu, mais eleganti, mais influenti, né?” Entretanto, Dona Flor confessa: “É muitu difíci dalguém daqui da vila me chama de Dona Flor.” “Difíci não chegá na casa dalguém que não tenha um tio, uma prima, uma irmã…” “Vou andandu por aí e as criança me chama de vó, de bisa.” “Me chama de mãe, de irmã, de tia…” “Eu sou responsáviu por muitus e muitus nascimentu aqui na comunidadi.” Dona Flor já colocou no mundo mais de 330 “mininu”.

Ela tem descendência indígena, com uma mistura bem brasileira. Mulher de estatura média/baixa. Magra. Pele escura. Cabelos crespos, grisalhos. Sempre presos cuidadosamente num coque baixo. Por vezes, semicoberto por um lenço ou um gorro de tricô. Veste saias ou vestidos, quase sempre. De tecidos claros, lisos, estampas sóbrias. Simples. Pés rachados no seu chinelo habitual. Seu rosto traz as marcas do tempo. Não só cronológico, mas de uma vida dura. Dona flor já foi garimpeira, boia-fria, tropeira, feirante. Ainda trabalha na roça, cuida de animais e plantas, faz licores, doces, farinha. Faz remédios e cuida de gente, da sua família e de toda a comunidade. É dita raizeira e parteira. Mãe de 18 filhos nascidos e 13 criados. Mais de 27 adotados.

Não é a aparência que a define. Tal como a natureza local, Dona Flor é de uma beleza ímpar. Ela tem uma postura altiva. Não soberba. Não. Uma postura de senhora de si. Olhar miúdo, mas direto e penetrante. Gesticula em harmonia com os movimentos da face. Seu semblante, boca, olhos, vão acompanhando o tom de suas palavras. Numa linguagem bem típica da região, misturada com palavras mais elaboradas que absorveu pelas suas vivências. Quando se trata de ervas medicinais, nascimento dos “mininu”, da comunidade, valores e causos, ela tem tudo na ponta da língua. Com uma autoridade e autenticidade inspiradora.

Ainda menina, foi com a mãe que teve sua primeira experiência “pra coloca us mininu nu mundu de Deus.” “Eu alembru bem que tinha uma curiosidade muitu grandi em sabê u que acontecia no quartu quandu as mulhe ia ganha us mininu. Por que ficava trancada lá? Por que eu não pudia entrá e vê?” Neste dia, sua mãe estava acompanhada de três parteiras e duas ajudantes, mas nada do “mininu” nascer. Já podia ouvir o choro das mulheres, tendo como certa a morte da mãe. Flor, tomada de coragem, cortou com uma faca de cozinha a corda que trancava a porta. As mulheres tentaram afastá-la, mas ela já abraçava a mãe. Pensou que a mãe morreria mesmo, e pediu ajuda de Deus para salvá-la. Sentiu uma mão por sobre a sua cabeça, aplicando-lhe uma injeção, que entrou como um fogo. Então ouviu uma voz que lhe deu instruções. Atônita, seguiu. A mãe deu um gemido muito forte, também clamando por Deus. Na sequência, a criança “escapuliu”, nasceu. A partir daí foi “xingada” de parteira. Fala com simplicidade e orgulho. Olhos vívidos. Alegres. E se gaba de ter ganho os seus “mininu” sozinha. Lidando com situações bem difíceis. Comenta com naturalidade e confiança, que sabe o que fazer só na hora. “Não é uma coisa aprendidu, é intuído.”

“Um, unnruru, la, lara, um unnruru…” Dona Flor, embrenhada nos matos, aproveita a vegetação diversificada, para identificar e manusear as ervas medicinais. Olha atentamente. Demoradamente. Cheira. “Essa aqui não é pra chá, é pra composição.” “Eu não aprendi a mexê nas erva cum ninguém. Eu adoecia. Morava nus mato. Não tinha médicu. Não tinha remédiu. Eu ia pru mato. Aquela erva que eu via que servia pra alguma coisa, levava pra casa. Quandu sentia alguma dor, alguma coisa, aí eu fazia minhas erva e bebia. As erva que eu receitu hoje pros otru, eu bebia primeiru. Se fizesse mal, fazia pra mim.” “É uma coisa que se cria da natureza.” “E a natureza ensina.”

Dona Flor diz ter somente dois lamentos na vida. Não queria ser analfabeta. E a mágoa que sentiu do pai por tê-la abandonado. O pai foi embora quando ela tinha 11 anos. Não deixou nada para a família, para mãe. Casa. Dinheiro. Nada. Ganhou muito dinheiro no garimpo, mas gastou tudo com a “mulherzada”. Flor entrou na escola com 13 anos e só ficou 6 meses. Não podia deixar a mãe “sofre sozinha”. Precisa ajudar na lida. Por isso não estudou. Conta tudo com o semblante sério, entretanto, mantém uma alegria, uma fala tranquila. Momentos de risadas nos causos mais pitorescos. Sempre numa postura altiva, confiante, corajosa. Quando pedem para ela ensinar seus saberes. Dona Flora confessa que não pode ensinar, porque não tem a menor ideia de onde vêm. Como vêm. Que horas vêm. Aponta para a cabeça e para o coração. “É daqui que vem. E di Deus. Eu descubru assim. Inventu na hora. Só confiu que é Deus e mais ninguém.”

“Eu mi consideru assim um poucu di escrava. Mas sô escrava afuriada. Ninguém manda nimim não. Só manda nimim Deus.”

Dona Flor tornou-se uma lenda viva. Atraindo o interesse de pessoas do Brasil e do mundo, em busca de seus conhecimentos. Personagem principal do documentário “Flor do Moinho” (pode ser visto no link Flor do Moinho — Documentário completo — YouTube. Além do livro “O Partejar e a Farmacopeia de Dona Flor”, lançado em 2022, pela Editora Avá, DF.

Penso que ela gostaria de ter escrito seu livro. Se ela tivesse a oportunidade de estudar, acredito que seria uma pessoa ainda mais incrível. Entretanto, talvez não fosse “A Dona Flor”. Dotada de tantas “sabenças” que intui e aprende com a natureza. Esta mulher adorável, que a vida lapidou com privações e dureza. Revelando esta joia única. Esta pessoa que carrega em si uma fórmula mágica de conectar humildade e simplicidade, com coragem, força, convicção, orgulho e um coração gigante. Amorosa com todos. Respeitada e reconhecida pela comunidade.

Prazer em conhecê-la, Dona Flor.

(* 02/02/1938– +09/08/2023)

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Sonia Marques
Comunidade da Escrita Afetuosa

Aprendiz de escritora - @sousoniamarques Compartilhando experiências - formada em Adm Florianópolis/SC