Sem fotos

Maru Chiquinha
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMay 31, 2024

Eu não tenho fotos de infância. Nem de adolescência. E não tenho nenhum trauma decorrente disso. Só um pouco de vazio. Uma curiosidade insatisfeita. Aquela vontade de saber como eu era. De ter certeza de coisas que eu apenas acho. Meu cabelo crescia pra baixo ou pra cima? Meu corpo infantil era magro ou já mostrava indícios do quadril avantajado que eu viria a ter? Como era o meu sorriso antes da troca dos primeiros dentes, quando alguns, apressados, se amontoaram? Perguntas sem respostas. Se ao menos o papai e a mamãe estivessem aqui…

Imagine-se diante de uma tela de celular, de televisão ou do que for. E nela surge de repente sua sobremesa preferida. Quando você se prepara pra abocanhá-la, a ficha cai: não é real; é só uma imagem. É esse vácuo, esse salivar frustrado, que me toma quando penso na minha infância. Ausências. Muitas. Ausência da minha família (ou minha ausência dela?); ausência das primeiras amigas; da liberdade de ser menina do jeito inteiro de ser; dos cuidados, orientações e apoio da mamãe, quando em minhas primeiras experiências com a menstruação, com as paqueras, com as paixões… Ausências. Inclusive de uma fotografia que eternizasse a minha meninice.

Por que a minha infância não foi registrada? Por um bocado de motivos. Naquela época, tudo era diferente de agora. Hoje, podemos explorar o mundo através do celular. Mas o conhecido por minha família se limitava ao que alcançávamos em nosso ir e vir em canoas a remo. Ou ouvíamos pelas ondas do rádio. Sem ter noção de significados. Os pobres daquele tempo eram pobres até não ter mais pra onde. Nós éramos desse time. Morávamos na roça, sem qualquer contato físico com cidades. Até a imaginação sobre elas era curta e distorcida. Raramente comíamos carne de gado. Nossas roupas eram quase uma obra de arte, de tantos remendos que tinham. E passavam de um irmão pra outro até que o uso se tornasse impossível.

Em nossa região havia o que chamávamos de regatão, um comerciante ambulante que percorria de barco pelas comunidades moradoras das margens do Araguaia . Era através dele que as famílias registravam suas crianças; compravam os remédios (geralmente pílulas ou soluções que as mulheres usam como base pra inventar outros remédios); a garrafinha de guaraná, cuja função se assemelhava a de um cafuné nas crianças, quando adoeciam, e adoecíamos muito; o tecido pra fazer roupas; a havaiana, que não tinha o status de “chiqueza” que tem hoje. E qualquer outra coisa de que precisávamos.

Os pobres do meu tempo de criança e da minha região não iam ao médico. Isso estava fora de alcance. Nossas doenças eram tratadas com ungüentos caseiros, que davam certo, ou não. As mulheres pariam dez, doze ou mais filhos sem ao menos cogitarem uma consulta ao médico. E não sabíamos da existência de pré-natal. Isso explica por que tantas mulheres e bebês morriam durante e no pós-parto.

Nesse contexto de necessidades tão primárias, a fotografia não estava entre elas. O que víamos nas paredes dos remediados eram umas fotos tipo pintura, que pareciam vindas de outros séculos. E as pessoas fotografadas nem se pareciam com elas.

A única foto de mim criança data do ano de 1974. Eu morava na casa do meu avô. A foto foi tirada na frente dela. Era uma casa imensa, com paredes grossas e um interior descuidado. Uma casa triste, embora ficasse na beira da praia. Seu aspecto sombrio me trazia pensamentos sobre fantasmas e alma penada, coisas que atormentavam a infância de qualquer pessoa. Na foto eu estava entre meu avô Vitor e seu amigo Ludovico. Dois negros enormes e eu, serzinho estranho e deslocado. Eu não tinha peito e não me lembro de ter curvas ou algum charme. Era encabulada, desengonçada e sisuda. Na foto, eu usava um vestido de corte reto, de um tecido tipo malha fria, com flores vermelhas graúdas sobre um fundo verde. Minha pose era a mais óbvia possível: Corpo ereto, braços estendidos ao longo dele, cabeça direcionada pra frente e o olhar assustado, fixo no nada. Eu, menina do mato. Assim eu fui captada por uma máquina fotográfica aos doze anos de idade. Pela primeira e única vez antes da juventude. Essa foto foi colocada num binóculo e mamãe a guardou por muito tempo. Mas ela sumiu, sem deixar resquício. A não ser essas lembranças meio toscas. E a dúvida: são verdadeiras ou não?

(M. C. — 29.05.2024)

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