Giovanna Acioly
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMay 21, 2024

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Sorria! Você está sendo fotografada!

Sorria! Dizia mamãe a cada clique da câmera fotográfica, enquanto meu pai apertava o botão. Ela era uma espécie de personal de imagem, lembrando que o rolo tinha no máximo trinta e seis poses, que nenhuma foto poderia ser desperdiçada. Foi dessa maneira que, aos oito anos, descobri que pessoas normais são perfeitas. E que só assim é que se tem direito a um álbum de fotografias.

Numa das primeiras manhãs do inverno em Brasília, quando o céu peladinho de nuvens fica ainda maior, dando a sensação que vai nos engolir, acordei com a casa agitada. Vovó tinha chegado e iríamos visitar o Lago Paranoá. A toalha amarela de fibra de coco me ofertava um café da manhã paraibano. Queijo coalho assado, cartola com canela, cuscuz com ovos mexidos. Muitas opções para uma magrela que achava perda de tempo parar para comer. Acostumada ao desjejum empurrando goela adentro um copo de vitamina de banana, entregue por mamãe antes mesmo de me levantar da cama, estranhei tamanha liberdade. Fui a primeira a sentar. Livre de qualquer registro, rapidamente joguei uns farelos de cuscuz no prato. De barriga vazia e alma repleta, corri para acordar minha boneca, a Juju. Hoje o dia seria animado!

Ao descobrir minha filhotinha, o céu verdadeiramente me engoliu. O corpinho de pano desnudo era o que lhe sobrava de integridade. O cabelo cor de mel havia sido picotado, o rosto riscado com hidrocor. Peguei-a nos braços. Aos prantos, levava meu desolamento a público, quando me deparei com um risinho de canto de boca. Meu irmão, silenciosamente, degustava minha dor. Se vingara de algo que não vejo colado nos álbuns para encaixar no quebra-cabeças da memória. Me recordo que ele não foi castigado. O que me insinua que o silêncio era conveniente a ambos.

Giovanna! Titubeando entre um pé e outro, mamãe se equilibrava no barrigão de oito meses. Com uma escova de madeira na mão, me caçava pela casa. Seu grito era a revelação de que, ainda que eu fosse tragada pelo céu, o mundo não pararia. Engoli o choro. Me entreguei ao seu esmero em finalizar o penteado perfeito. Deixa mais soltinho, filha! Fica charmoso! Charmoso não é bonito!, respondia ao encarar vovó com madeixas arredondadas, que pareciam ter acabado de se libertar dos bobes. Nunca fui diagnosticada com transtorno obsessivo compulsivo — essa expressão é bem mais nova que eu — mas se um fio estivesse folofado, eu refazia, refazia, refazia o penteado até que estivesse bem lisinho! À minha maneira, contribuía para que tudo estivesse no devido lugar.

De frente para o espelho, papai também cuidava da cabeleira. Com o pente de bolso azul bebê, esticava para o lado os cabelos castanhos que enrijeciam mais ou menos a cada mês, dependendo do sabão escolhido. Xampu não é coisa de homem!, dizia. Quando seguiu para o corredor, bastou uma troca de olhares para eu e meu irmão selarmos a paz numa sonora gargalhada. Se a frente estava impecável, na parte de trás os fios subiam como uma cauda de pavão. O que o espelho não mostrava, era entregue ao mundo sem retoques.

Entramos os sete, mamãe com a sua bebê na barriga e eu com a minha no colo, no Maverick branco 76. Enquanto mamãe não abria o vidro para não assanhar seus cabelos e os de vovó, eu metia o rosto no vão entre o banco de papai e a janela. Suavemente o carro desceu pelas tesourinhas para, então, jogar vento em cada pedacinho do meu rosto ao cruzar o Eixão. Quando estacionou, percebi pelo retrovisor que uns fios haviam se arrepiado, enquanto outros se soltaram atrás. Assim como a Juju e meu pai, eu também não estava mais a contento.

O cuscuz não comido, a rivalidade entre irmãos, a cauda de pavão, nada havia sido fotografado. Quem poderia testemunhar que não éramos uma família perfeita? Só eu, bagunçada, destoaria no álbum. Não seria chamada por mamãe para sorrir. Enquanto todos desciam para a beira da água, fiquei só. Desconfiada, vi vovó esticando a saia, mamãe organizando a franja do meu irmão. Antes que sentissem minha ausência, notei que não estava amuada. Ao contrário, uma brisa de alegria me invadia. Peguei impulso. Flutuei. Sobre a grama queimada. Sobre as contradições do bem-querer. Sem que eu percebesse, meu pai apertou o botão. Registrou o que sobrou de mim. Uma menina livre. E feliz.

Maiex4

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