Tomates e memórias

Maru Chiquinha
Comunidade da Escrita Afetuosa
4 min readJun 27, 2024

Texto 1

A imagem mostra um cesto de vime, de tamanho mediano, cheio de tomates maduros. O cesto é carregado por uma pessoa negra, cujo sexo não se sabe. Ela está pisando num chão de cimento grosso e tem à sua frente uma horta, uma plantação de tomates.

Texto 2

Um cesto de vime cheio de tomates maduros. Uma pessoa negra, cujo sexo não dá pra saber, o carrega, pela alça. À sua frente, uma horta, plantação de tomates, suponho. É uma imagem bonita, mas nada excepcional. O que a torna especial são as lembranças que ela traz. Umas, até, não estão diretamente relacionadas à imagem em questão. Um pensamento que faz elo com outro e vai montando um memorial dentro de mim.

Revejo o lugar onde nasci. Jacarezinho. Não existe no mapa. Nunca existiu. Pequena vila formada por minha família e parentes. As maiores aventuras da criançada aconteciam no rio e às proximidades dele. O banho demorado, que avermelhava os olhos e desafiava a paciência das mães. O pulo arriscado, de cima da capueirana. O momento-encanto, do mergulho atrás dos peixes que brilhavam perto das tábuas de lavar roupas. E a corrida pra espalhar a nuvem de borboletas que sobrevoava os pés de calumbi, embalados pelo vento. Perto do meio dia, quando o banzeiro agitava o rio e elevava a adrenalina, era o horário preferido. Eu, como filha mais velha, tinha muitas responsabilidades e pouco tempo pra ser menina. Nem sempre acompanhava as outras. Mas quando conseguia, me jogava por inteiro na aventura. Essa fase foi curta, pois logo “fui embora”. Mas enquanto lá, aquilo era um pouquinho do céu. Quando chegava em casa, depois de ter passado da hora de voltar, não raramente, mamãe me trazia de volta à realidade com cipoadas de mato verde. Não era seu costume ignorar nossos deslizes. O sol que queimava minha pele também tatuou memórias dentro de mim. Adoro essa dádiva divina!

Os tomates. Maduros, suculentos. Uma visão da fartura em nossas plantações. A boca se enche de água. Vontade de degustá-los. A imagem quase palpável me traz nítidas lembranças da mamãe e de suas comidinhas simples e gostosas: Arroz branco, peixe frito, carne de caça curtida no leite de coco ou assada na brasa… e aquela salada fresquinha, que combinava com tudo: tomates cortados em rodelas, com pepino picadinho, folhas de chicória e uma pitada de sal com pimenta do reino. O cheiro e o gosto daquela mistura ainda não se desprenderam de mim. Mamãe adorava tudo que era cultivado na terra. Eu gosto de me deter nessas lembranças. Pra sentir saudade dela. Pra me imaginar perto dela. E reencontrá-la outra vez. Em meus devaneios. É como se nessa momentânea recriação mental de cheiros e sabores, eu voltasse no tempo. Sem nenhum misticismo. Só na imaginação. E na vontade.

A mão carregando o cesto com tomates, embora se pareça feminina, me lembra as mãos do papai. Trabalhador como nenhum outro que conheço, ele tinha mãos fortes, ásperas, calejadas de labuta. Nelas e nos braços, as veias saltavam da pele, salientes, testemunhando do esforço de todos os dias, ano após ano, pra sustentar a família. Décadas depois, como eu gostava de tocar aquelas mãos, já velhinhas, sem força, macias. Mãos que se desgastaram sem reservas e sem melindres, a fim de que os filhos recebessem o melhor que ele poderia oferecer, ainda que isso fosse pouco. E o tivessem como exemplo de honra, decência e dignidade.

A plantação de tomates quase me põe diante dos nossos canteiros. Feita no pé da ladeira, rodeada por um enorme terreiro, seguido por grandes árvores frutíferas e não frutíferas, nossa casa não tinha luxo. Nem conforto. Era coberta por palha de coco babaçu e cercada com talas da mesma palmeira e barro. Nosso abrigo. Não conhecíamos nada melhor.

As árvores altas e frondosas traziam frescor pro corpo e pra mente. Quando sacudidas pelo vento, “cantavam”, “dançavam”, “gemiam”. Nossa imaginação infantil ia às alturas. As meninas, fazíamos casas imaginárias, inventávamos, inventávamos... Todas essas coisas formavam nosso pequeno universo.

Entre as árvores e a casa, espalhados pelo terreiro, os canteiros. Um pra cada tipo de plantio. Feitos com toras de paus, adubados com não sei o quê, se tornavam verdes, viçosos e agradáveis aos olhos. Mamãe plantava de tudo: tomate, pimentão, coentro, chicória, cheiro verde, pimentas, cebolas, plantas medicinais. E outras coisas. Ao serem molhadas, no começo e no final do dia, as hortaliças exalavam um cheiro fresco que, não sei como nem por que, diziam algo sobre vida, força, esperança, vida calma…

Que imagem rica! Quantas histórias e lembranças evocadas! Quantas saudades trazidas! E quantas gostosuras contidas num cesto de tomates!

(M. C. — 26.06.2024)

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