Jaqueline Lima
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readMay 26, 2024

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Um casal peculiar

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Lá pelos idos anos 70, em uma pequena cidade do interior de Minas, vivia um casal bem interessante. Ele era bem alto, com quase dois metros de altura, usava um chapéu de palha e carregava inúmeras medalhas de santos no pescoço. Cada medalha era um presente que ele orgulhosamente exibia. E tinha santo de tudo enquanto era nome. Tinha uns que a gente nem conhecia ou tinha ouvido falar. Abel ostentava com orgulho as correntes no pescoço com os santos dependurados. Ela era baixa, batia na cintura do Abel. Mindinha, seu amor. Tinha apenas um metro e meio. Pequena em estatura, mas grande em personalidade, era ela quem mantinha Abel na linha e arrastava ele por toda a cidade. Também usava medalhas de santos. Em menor quantidade que o marido. Usava vestido rodado. Um pitó enrolava o cabelo enorme de cigana. Unhas pintadas de vermelho carmim. Como o batom.

O casal percorria a cidade realizando pequenos trabalhos para ganhar algum dinheiro extra, embora se acreditasse que já haviam se aposentado. Vestidos com roupas coloridas e extravagantes, andavam de mãos dadas pelas ruas. A imagem de Mindinha ao lado do alto Abel era divertida e cativante. E ao mesmo tempo tenebrosa e instigante. Eles amavam a cidade onde viviam e o povo hospitaleiros que os acolhia.

De vez em quando visitavam a igreja local e Mindinha dizia:

“- Abel, vamo passa na igreja que pra mode o Padre Gerardo abençoá os nossos santo.”

“- Que isso Mindinha?! Pricisa não. Quem abençoa o Padre são os santo, muié.”

Mesmo assim, Mindinha levava Abel pra dentro da igreja matriz e rezava junto com o Padre da cidade. Tomava um gole d’água, um café com pão e saiam em busca de mais aventuras pela pacata cidade. Muita mãe, nessa época, fazia medo nas crianças:

- Se não comer a couve todinha eu chamo o Abel pra lhe pegar, e levar pra casa dele morar com a Mindinha.

Numa dessas tardes pachorrentas, que sempre se deslancham pelas cidades do interior, minha tia convidou o intrigante casal para tomar um café com bolo, que havia acabado de sair do forno, quentinho. Era uma receita nova que ela havia testado, dos cadernos da coleção que a cunhada acabara de organizar. Beneficie para a reforma da igreja matriz. A coleção ficou ótima! Reunia receitas maravilhosas testadas pelas melhores quituteiras da cidade, incluindo a minha mãe, e todas as mulheres prendadas da Família Morais Lima.

Eles entraram pela porta da cozinha. Sentaram-se e foram tomando a caneca de café nas mãos com toda segurança de quem adora um agrado. Minha tia serviu um bom pedaço de bolo para cada um. Conversa vai conversa vem, minha tia observa Abel retirando uma por uma as uvas-passa colocadas com tanto cuidado na massa do bolo. Bolo cheiroso de maçã, canela e uva-passas.

“-Uai Abel, você não gosta de uva-passa?”

“- Que isso?”

“- Essa frutinha doce e saborosa que está no bolo e o senhor está separando uma por uma antes de comê-lo.”

“- Uai a senhora me adiscurpe, mas eu pensei que fosse barata. Aquelas pititinhas que quase que parece purga.”

Minha tia olho pra Mindinha e as duas caíram na risada deixando o Abel sem entender nada.

“- Pode cumê meu véio. É gostoso. Parece com ameixa doce.”

“- Bem que eu tavu achando elas bem docinha. E nunca tinha visto barata doce. Uai, já que é de cumê, eu vou cumê então.”

E Abel comeu rapidinho tudo o bolo. E as uva-passas.

O casal mais interessante da cidade circulou por ali durante muito tempo. Um cuidando um do outro e o povo cuidando dos dois. Ainda lembro, na minha infância vê-los bordejando pela Praça da Matriz com seus santos dependurados nos pescoços, protegendo-os e os amigos que os acolhiam.

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Jaqueline Lima
Comunidade da Escrita Afetuosa

Sou de Belo Horizonte e sempre gostei muito de ler. Sou escritora. Gosto de viajar, de dançar e tomar um bom vinho com os amigos. Amo livro de papel !