Giovanna Acioly
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readJun 29, 2024

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Uma obra de arte

Alô! Oi, estou muito feliz por você ter se disposto a me pintar. Amo o seu trabalho! Mas não enviei minha fotografia, como você pediu. É que há pouco me descobri amante de histórias. Então, será que poderia, ao invés de me desvendar com seus olhos, fazê-lo por meio das minhas palavras? Sua arte nascendo da minha…seria perfeito!

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Começando por baixo…caminho sobre pés pequenos, arqueados na base e, como um peito de pombo, cheios em cima. Descem delicadamente até dedos gordinhos, Botero ficaria louco com eles! De repente, inusitadamente, o dedão esquerdo empina pra cima. Atrevido! Tão maluquinho quanto o pincel de Van Gogh, arremate de caos se fazendo notar entre linhas que insistimos em dar simetria.

As pernas são torneadas, com o joelho arqueado pra trás. Mamãe diz que são iguaizinhas às do meu pai, que puxou à minha avó, que morreu aos oitenta com as coxas durinhas. Estaria mentindo se dissesse que não torço para que as minhas sejam assim daqui a trinta anos. Digna de Avestruzes Bailarinas! Imagina eu…nova musa de Paula Rego, uma octogenária ostentando afronta à lei da gravidade. Saindo dos delírios, por ora, percebo os contornos ganhando volume, numa sutil transição entre o pré e pós-menopausa. Quadris mais largos do que jamais foram por meio século. A pochete recém-chegada, botando carne no que outrora era cintura. A sensualidade de Judite e a cabeça de Holofernes, de Klimt, renascendo em Simonetta Vespucci, de Botticelli. Renascimento, literalmente.

À medida que a vista sobe nas minhas curvas, tudo o que pareceu se tornar gigante vai se reduzindo tal qual Abaporu, de Tarsila. Braços finos. Meu bumbum também pouco mudou. Resiste à lei da gravidade, me fazendo acreditar num DNA rico em negritude. O que não seria desmentido pela melanina que esbanja um tom amarronzado quando pego sol, mas que me dá um aspecto amarelado na ausência de vitamina D, tal qual a morena de Samba, de Di Cavalcanti.

No meu rosto, rugas e um bigode chinês crescem a cada ano. Tenho algumas manchas e minúsculos sinais, marcas do sol e da idade. Quando vistos em conjunto, compõem um desenho harmônico. Revelam lagos no meu olhar, flores no meu sorriso. Sim, igual às obras de Monet! Nisso não puxei à minha avó paterna. Não lembro das suas coxas, mas seu rosto convergia todo para o nariz, de modo que mal se via olhos e boca. Um conjunto tão assustador quanto o imaginário de Dali!

Meu nariz é pequeno. A boca, grande. Meu olho esquerdo é um pouco maior que o direito. Ninguém nota a diferença, apenas veem dois grandes olhos negros, de cílios compridos. Mas, quando, no espelho, tampo o rosto pela metade, reparo que o lado esquerdo é vívido, inquieto, enquanto o direito inspira calma (meus paradoxos internos se fazendo presentes na carne). Dá-lhe Picasso!

Os cabelos são castanhos, finos e lisos. Agora. Estão repicados, em tamanho médio, mas pode ser que, se nos conhecermos, você se depare com uma ruiva de cabelo curto, ou loira de cachos. Sou uma Andy Warhol das minhas madeixas.

Acho que falei de tudo, incluindo relevos e irrelevâncias tão minhas, que nem mesmo a visão alcança. Mas antes de começar a me pintar, imagine um redemoinho dentro do peito. Que não para de rodar. Pensamentos passeando por todas as curvas de possibilidades, ganhando substância e, assim como minha cabeleira, me mudando a cada instante. Não que eu seja instável, não é isso. Sou profunda. Flexível. Profundamente flexível.

Acho importante saber disso para delinear não só os caminhos onde os sulcos atingen minha face, mas também para mostrar a profundidade dos meus olhos castanhos. Não suportaria me ver com uma aparência insignificantemente bonita. Não almejo a perfeição. Por isso, me descrevi entre luzes e sombras. Foi para abrir uma porta. Entre. Sinta-se à vontade. Faça das suas tintas um ser. Humano. Não desejo ver meu quadro apenas como o que uma fotografia poderia mostrar.

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