Volta antecipada

Anabeatriz
Comunidade da Escrita Afetuosa
3 min readFeb 26, 2024

John e eu tínhamos dezessete anos. Nos conhecemos na pequena cidade belga de Verviers, quase na fronteira com a Alemanha. Éramos intercambistas e o programa nos alocou de forma semelhante. Estudaríamos na mesma escola, frequentaríamos o mesmo clube e moraríamos nas mesmas famílias em sistema de revezamento. Enquanto ele estava na família dos Durant, eu estava nos Lambert; seis meses depois, trocaríamos.

Eu sabia pouco do idioma, mas tinha mais facilidade, o francês se assemelha e muito com o português. Para John, era mais complicado. O inglês era sua língua nativa, seu sotaque era inconfundível e ele tinha enorme dificuldade em pronunciar o “R” em francês. Mas o pior era ele me contar como a família belga em que ele morava fazia chacota com as suas tentativas de falar francês. Ele também me disse que eles faziam piada com o peso dele, a cultura e a comida de seu país. Jonh mal via a hora de sair dali.

John saindo da casa dos Durant, significava a minha vez de me mudar para lá. Eu, internamente, me apavorava um pouco com essa idéia. Eu preferia passar o ano todo com os Lambert. Gostava de estar com eles, eram carinhosos. Gostávamos de conversar tomando vinho no jardim nos dias de calor, passeávamos. Eu pensava em pedir para ficar, mas não falei nada, segui a regra do programa.

Organizei minhas malas e fui morar na casa dos Durant. Era uma casa mais afastada da cidade, na zona rural. Da janela do quarto, eu avistava um gramado grande e bois. A casa era grande, de pedra por fora e gelada por dentro. Não tinha calefação em todos os cômodos. Eu cruzava o corredor da casa de casaco. O “pai” logo tratou de fazer piadas das minhas reclamações do frio. Eu, brasileira, não estava acostumada com o rigoroso inverno europeu.

No segundo dia, na volta da escola, eu desci no ponto de ônibus errado. Tive que cruzar um campo todo, equivalente a cinco quarteirões, até a casa. O chão estava coberto de neve e eu ia pisando vagarosamente. A bota pesava. O vento soprava na minha cara. Eu usava um bom casaco e luvas. Não tinha nenhuma proteção para os ouvidos. Pisava, pisava e não chegava nunca. Eu comecei a sentir frio.

Finalmente, abro a porta de madeira na entrada da casa. Não tem aquecimento nesse cômodo de entrada. Sigo reclamando do frio. Levo as minhas mãos nos meus ouvidos. Estão congelados. O “pai” me olha e ri sem parar. Acha graça no apuro que passei.

No jantar, ele segue fazendo piadinhas sobre minha aventura no campo de neve. Não demora muito para surgirem piadas sobre o calor do Brasil, o Carnaval, as mulheres. Escuto quieta. Não acho graça. A mãe se diverte. Percebo que eles gostam de falar da vida alheia. A comida é muito boa, mas o papo não. Essa dinâmica segue em quase todas as refeições. Zombar de outras pessoas. Sobra até para o John, piadas e piadas sobre a forma como ele se comunicava em francês.

Como eu me falava melhor francês que John, o comentário passou a ser sobre as minhas amizades, John, amigos brasileiros. Humor repleto de acidez que eu não estava habituada. E a bola da vez passou a ser a minha paixão pelos chocolates belgas e os quilos extras que ganhei em função disso. O excesso de chacotas com boas doses de sarcasmo começou a se tornar muito desagradável para mim.

John regressou ao seu país e eu fiquei sem meu melhor amigo. Pedi a ele que me telefonasse. Seguiu-se mais um comentário em tom de deboche quando o “pai” reconheceu a voz de John ao telefone.

Novembro chegou. O mês do meu aniversário. Decidi marcar uma viagem com amigos para comemorar. Ao regressar, a “mãe” se queixa das vezes que precisou atender o telefonema de pessoas querendo me cumprimentar. Não havia celular à época. Ouço o comentário chateada, silenciei.

Meu intercâmbio está quase no fim, o Natal se aproxima. Remarco minha passagem. Antecipo alguns dias para passar as festas de fim de ano no Brasil. Convenço a Camila a fazer o mesmo e voltar no mesmo voo comigo. Chega de piadas infames. Sorrio e abraço carinhosamente o grupo de adolescentes intercambistas que foram no aeroporto em nossa despedida.

Fevex3

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