Zé da Valentina

Maru Chiquinha
Comunidade da Escrita Afetuosa
4 min readJun 30, 2024

Seu nome era José Ferreira de Sousa, mas todos o chamavam de Zé Hipólito, numa referência a seu pai. Depois, passaram a chamá-lo de Zé da Valentina. Dessa vez, em alusão à esposa. Filho caçula de Hipólito e Verônica, ele tinha pouco mais de um metro e meio. Pequeno, negro, franzino, nariz comprido, cabelo crespo… não havia nele nenhuma beleza. A não ser, talvez, algum detalhe discreto, daqueles que só olhando de perto para vê. E se houve, foi levado embora com os anos de sua mocidade.

José não freqüentou escola, mas sabia ler e escrever. Aprendeu com a mãe. Seguindo o exemplo dela, reproduziu a proeza com a filha mais velha. Como resultado, ela foi “invadida” por um sonho estranho que mudou sua vida e a perspectiva que tinham a seu respeito.

José casou-se no ano em que ia completar trinta anos. Sua esposa fez vinte no mês posterior ao casamento. Onze meses depois, antes de o ano acabar, nasceu a primeira filha. Depois disso, engataram: um filho a cada dois anos. Foram onze. Ele era honesto e trabalhador. Ah, como trabalhava! Fazia roças, plantava, colhia; caçava, pescava e de vez em quando fazia bicos, em fazendas vizinhas. Tudo para ganhar o sustento de sua grande família. Naquela época e região, trabalhava-se para garantir a subsistência. Não havia preocupação com a educação formal dos filhos.

José gostava de cantar. Cantava bonito! Valentina o acompanhava. Tinham vozes frágeis, mas penosas, agradáveis de ouvir. Na cabeça dos filhos ouvintes, um mundo imaginário se formava. Enveredados nas lembranças inventadas, sentiam saudade não sei do quê. Imaginação aguçada pela cantoria dos pais.

Já velhinho, e com a memória oscilante, José ainda cantarolava trechos da toada que cantou para impressionar a mulher, quando foi buscá-la para morar com ele. E chorava, relembrando a cena. O choro lhe vinha fácil, ele era dengoso que só. Naquele tempo, depois de casar-se, a moça passava uma semana com a família de origem antes de ser entregue ao marido. Assim, chegados esses dias, formou-se uma grande comitiva de pessoas da estima e consideração do recém casado, para acompanhá-lo na busca à amada. Rodeado por canoas, ele ia todo prosa no jacumã (leme) de seu barquinho. A ela, sentada na frente. Ele cantou: “Eu nunca pensei que você fosse tão ingrata assim/Não seja teimosa, não seja ruim…” A letra não era apropriada para o momento, mas ele afirmava ter chegado ao coração dela. Dizia: “E a mulher ficou imecionada!” Ele queria dizer emocionada. Os dois cantavam também nas madrugadas, trabalhando. A casa de fazer farinha ficava a poucos metros da casa de morar. Suas vozes cantadas embalavam o sono e os sonhos dos filhos. Tempo bom, aquele!

O começo do casamento de José e Valentina foi tumultuado. Ele era bruto, grosseiro. Deve ter puxado ao pai. Não era malvado, mas quando se aborrecia, a destratava, lhe fazia acusações, feria sua alma. Algumas vezes, chegou a lhe dar empurrões. Ela ficava triste, chorava escondido, mas se defendia com firmeza. Fazia barulho, devolvia a afronta na mesma medida. Costumava dizer: “Quem muito se abaixa o fundo aparece”. Que grande mulher, a minha mãe!

O tempo transformou José. Tornou-se moderado, cuidadoso, apaixonado. Havia entre eles uma sintonia admirável. A olhadela de um comunicava um tanto de coisas ao outro. Ela brincava, dizendo que o apego dele não era amor coisa nenhuma. É que ela o entendia nas miudezas de suas intenções e vontades. Falava isso e sorria com leveza. As pessoas diziam: se um morrer, o outro não demora a ir, também.

Depois de trinta e sete anos juntos, Valentina adoeceu. Seriamente. Doença comprida, sem diagnóstico. A falta de recursos da família a deixou à mercê da saúde pública. Luta grande, difícil de suportar. José se entristeceu, se debateu, orou… mas não teve jeito. Sua amada partiu. E para surpresa de todos, ele, que antes vivia abatido, suspirando pesado, revigorou. Viveu bem por alguns anos. Até que a memória começou a falhar. O início nem parecia ser de verdade. Aos poucos, ele foi ficando tão diferente dele mesmo. Tornou-se menino outra vez. Menino “teimoso”, que desaprendeu de ler, repetia as mesmas histórias e fazia as mesmas perguntas muitas vezes. Que se esqueceu dos filhos e netos e inventou um mundo só seu, repleto de fantasias. Passava horas assobiando baixinho, enrolando pano com pano, montando trouxas, enchendo sacos, como se fizesse um grande trabalho. Desenvolveu a “vontade” de viajar, “conversava” com pessoas do seu passado, já falecidas. Referia-se a elas como se estivessem no aqui/agora. Desinformadas, as outras pessoas chamavam aquilo de caduquice.

Um dia, ao por do sol, ele tomou banho, lanchou, e foi com a filha caçula para a casa de outra. Enquanto caminhavam, ele parou na frente de uma plantação de mandioca, se apoiou num galho e falou MANDIOCA-CA! Deu uns poucos passos… e caiu de joelhos, no chão da rua. Sob os gritos da filha, se juntaram as pessoas e o socorreram. Mas ele não estava mais presente. Era 19 de junho de 2018, terça-feira. O mesmo dia da semana que ele chegou no mundo, há oitenta e oito anos. Hoje faz seis anos desse último feito do meu pai.

(M. C. — 18.06.2024)

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