Nós e nossos humanos

Cristiane Snetto
Comunidade Tecnopuc
4 min readAug 13, 2020
Foto por peoplecreations — br.freepik.com

Por muito tempo fomos felizes em uma grande empresa. Mas um dia começamos a ver movimentos estranhos ao nosso redor. Nossos humanos estavam agitados, guardando seus pertences em caixas de papelão. Uma das companheiras da sala de reuniões disse que tinha escutado rumores de que todos seriam transferidos para a central. O diretor falou em todos, mas será nós estávamos incluídas? Depois que as caixas foram embora, nossos humanos também sumiram. Até que um grupo de pessoas entrou e colocou alguns panos por cima de nós. As noites naquele saguão vazio eram frias. Mesmo assim, o pó começou a acumular. O silêncio estava nos matando. Presas, sozinhas, sem a companhia dos humanos para os quais servíamos, sem escutar passos, vozes, música, sons, ficávamos repetindo as mesmas histórias, Vimos nossas amigas da sala ao lado, as vermelhas, serem levadas para outro lugar… E nós, permanecemos ali, enferrujando. Em uma tarde, algumas pessoas entraram no prédio. Estavam equipadas com esfregão, panos, produtos cheirosos e esponjas. Sorriam e conversavam, mas também reclamavam como nossos corpos estavam sujos. Mal sabiam elas o quanto esperávamos por aquele momento, aquele banho gostoso e refrescante. Ainda sentíamos a falta dos nossos humanos, queríamos saber onde eles estavam, mas o frescor daquele banho nos deu a esperança do reencontro.

As pessoas foram embora, deixaram as janelas abertas, para não ficarmos novamente com cheiro de mofo. Cuidamos para não nos sujarmos. No dia seguinte, outras pessoas entraram no saguão. E uma a uma, fomos levadas para outro prédio. Eram pessoas diferentes dos nossos humanos, mas pareciam ser bons. Fomos empurradas até outro prédio. O clima era totalmente diferente. As pessoas sorriam mais que as anteriores. As salas eram espaçosas e ensolaradas. As pessoas que nos receberam comentavam o quanto estavam felizes por nos ver. Vimos algumas companheiras saírem meio cabisbaixas. Claramente estávamos pegando o lugar de alguém. Mas assim como acontecia com os humanos, nós também precisávamos dar um upgrade, uma reciclada, trocarmos de ares. Fomos etiquetadas para não sermos confundidas. Eles gostavam tanto de nós que não queriam que fossemos trocadas ou esquecidas. Agora tínhamos algo que definitivamente nos ligava aos nossos humanos. Aqueles dias de esquecimento finalmente ficaram no passado. Entre sorrisos e conversas sérias, acompanhamos por muito tempo o cotidiano dos nossos humanos. Chegavam cedinho, e só saiam à noite, quando as estrelas já chegavam no céu. Uma de nossas companheiras tinha mais trabalho do que todas nós juntas, porque o seu humano chegava cedinho, às vezes antes mesmo do sol nascer, e ia embora tarde da noite, bem depois que todas as luzes já haviam se apagado. Fazíamos o nosso trabalho sempre de bom grado, porque essa nova turma de humanos ERA INCRÍVEL!

Até que, um dia percebemos uma movimentação diferente. Nossos humanos estavam agitados, e pouco paravam na sala. Conversavam baixo, não mais se abraçavam ou se beijavam. O álcool gel começou a ser visto com mais frequência nas nossas amigas mesas. A única coisa que conseguimos entender de suas conversas era que o mundo estava doente. Eles começaram a juntar alguns pertences. Não todos, como os humanos anteriores, poucas coisas, computadores, telas, carregadores e mochilas. Eles foram embora no meio do dia, antes de escurecer, o que também não era o comportamento normal. No dia seguinte, nem todos voltaram, só um ou outro. O prédio ficou vazio e o que se viu foi uma agitação muito maior daquelas pessoas que lavavam nossas costas. Elas estavam mais quietas e agitadas também. Falavam do horror da situação e o cheiro de álcool tomava conta das salas, antes perfumadas e cheias de vida. Não estávamos esquecidas como antes, algumas de nós ainda trabalhavam bastante, mas era uma jornada solitária. O time que antes formávamos com nossos humanos agora estava prejudicado. Os dias foram passando e os poucos humanos que permaneciam nas salas estavam diferentes, usavam máscaras nos rostos, e não conseguíamos ver os seus sorrisos. Mas eles ainda sorriam, dava para ouvir, principalmente quando alguém aparecia, também mascarado, para trazer uma entrega ou dividir um café. Passado algum tempo, uma de nós recebeu a visita do seu humano, que rapidamente a pegou e a colocou no carro, discretamente, quase sem ser visto. Pouco há pouco, outras de nós foram sendo levadas por seus humanos.

Soubemos que nossas companheiras estão espalhadas pela cidade. Algumas bem pertinho, no Jardim Botânico, no Partenon, no Bom Jesus. Outras um pouco mais longe, lá para os lados do Bom Fim e do Jardim Leopoldina. E tem também aquelas que viajaram um pouco mais, lá para a Zona Sul.

Sentimos falta delas, mas nós, as cadeiras, que ainda permanecemos no escritório, estamos felizes, pois cada dia um humano novo aparece por aqui, seja para levar mais uma de nós, seja para visitar os outros humanos guerreiros que continuam por aqui, ou simplesmente para dar um ar de normalidade a tudo isso, que cada dia fica mais estranho. Tão estranho quanto uma cadeira escrevendo suas memórias.

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