A Democracia Proletária não Começa com o “Poder Popular”

Uma das grandes reflexões que nos apresenta Marta Harnecker sobre o processo revolucionário cubano, no seu livro “Cuba: democracia ou ditadura?”, trata-se fundamentalmente da forma como ela analisa não só o período pré-revolucionário e toda a movimentação nos pormenores da construção política e estrutural em Cuba, como também a questão do poder cubano.

É prudente destacarmos aqui a construção do poder em Cuba, como um dos pontos de grande relevância no debate apresentado por Harnecker; quando ela trata de discutir o papel do Estado em assegurar a democracia proletária cubana, em detrimento do plano de fundo conclamado como “Poder Popular”. Ela deixa em evidência que a democracia para o povo não começa pela reivindicação abstrata de um tal “poder popular”, mas ao contrário, ela é garantida em primeira instância pela construção objetiva na figura de um Estado revolucionário, capaz de assegurar sobre os contrarrevolucionários a mais pertinente das ditaduras, e oferece ao povo a participação concreta no desenvolvimento dessa estrutura de dominação.

“(…) Tal como o Estado cubano foi uma ditadura para a contra-revolução, foi para o povo — ainda sem a presença de instituições representativas — um Estado essencialmente democrático. Durante todos estes anos tem representado e defendido os interesses dos trabalhadores, da grande maioria do povo cubano e, ao mesmo tempo, não tomou nenhuma medida revolucionária importante sem consultar as massas através de diferentes mecanismos” (pag.32).

Desse modo, o Estado passa a ter a característica fundante de preservar as conquistas da revolução, no florescimento do período pós-revolucionário. Os formalismos por detrás do “poder popular”, não poderiam ser senão uma abstração desse processo.

“O termo <<Poder Popular>> que se tem usado em Cuba para designar este processo de participação institucionalizada das massas na gestão do Estado, pode prestar-se a confusão. Alguns poderiam pensar que só no momento em que os nossos elegem os seus delegados e estes começam a usar as faculdades que lhes outergou o Poder Popular, se pode falar da existência de um poder do povo em Cuba” (pag. 35–36).

Quer dizer, as condições materiais postas para os cubanos estavam em frangalhos, e o mecanismo de absorção dessas contradições para avançar na participação concreta de seu povo no processo revolucionário, passava necessariamente pela construção de um poder que desse cabo de garantir em primeira instância o desenvolvimento continuo do próprio processo revolucionário e da maioria contra a classe minoritária exploradora. Somente assim, efetivadas todas as pendências imediatas da revolução, falamos de poder popular, não como a garantia primada da revolução mas como um complemento ulterior da própria revolução.

“É importante ter presente também que este passa transcendente que hoje se dá em Cuba não é um passo atrasado. Para o dar requeria-se preparar as condições políticas, econômicas e sociais que só hoje existem. […] Além disso, os problemas do subdesenvolvimento da sociedade cubana eram tais que faziam temer, e com razão, que a limitação de recursos não permitiria ao Poder Popular cumprir as suas tarefas mais essenciais, com o consequente descrédito deste frente às massas” (pág.37).

Como parte da nossa América, a ilha caribenha tinha seus atrasos concretos e subjetivos. Concretos pela condição produtiva debilitada, localizada e condicionada sobretudo no campesinato e subjetiva pelo grande atraso cultural de seu povo. Todos esses elementos precisam estar a disposição se quisermos observar com qualidade a construção do poder cubano. A vontade das massas era a construção das reformas mais imediatas e o acesso aos direitos básicos que lhes foram retirados. Somente o instrumento estatal na figura de ditadura poderia impor de forma qualitativa os anseios do povo, não podendo ser atribuído aos termos de “poder popular” forjado no formalismo revolucionário, que não indicava os caminhos para desenvolver a democracia proletária. Somado a isso, “nessa época não se contava com um elemento ainda mais fundamental: a existência de um Partido forte” (pag. 38), não se tinha em Cuba um partido comunista capaz de tomar a frente desse processo e indicar o horizonte revolucionário, ele só foi construído posteriormente, na unidade das totalidades dos setores mais consequentes em Cuba, como também comenta Harnecker no seu livro.

Se fizermos um paralelo com o Brasil, hoje nos encontramos em uma posição bastante parecida com a dos cubanos à sua época. Evidentemente que as relações de dominações no Brasil são diferentes e requerem uma apreciação particular das nossas condições objetivas e subjetivas para a construção da revolução brasileira. Entretanto, vale mencionar o fato de não termos um partido revolucionário em nosso país e também termos, naturalmente, a mesma discussão e necessidade de correção quanto as dimensões estratégicas para a revolução e a constituição do poder, com alguns setores objetivando o abstracionismo ao invés da formulação objetiva e concreta daquilo que nos garante em primeira instância a democracia proletária, o Estado proletário.

Cuba conseguiu vencer as contradições dentro da sua revolução e como bem observa Harnecker, nos deixa para reflexão os caminhos a se tomar dentro do processo revolucionário, e também nos alerta quanto aos perigos de acabarmos confundindo um projeto político concreto para a sociedade, com os abstracionismos localizados nas fraseologias que só encontram resolução enquanto palavra de ordem.

Bibliografia:
Harnecker, Marta. “Cuba: democracia ou ditadura?”, Global Editora, 1974.

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