O Papel dos Comunistas nas Eleições

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Encontramo-nos mais uma vez em ano eleitoral e mais uma vez retornamos ao debate de sempre: afinal de contas, qual deve ser o papel dos comunistas no processo eleitoral?

Essa não é uma pergunta simples de ser respondida e requer um bom esforço reflexivo. Por ser uma discussão ampla, esse texto não pretende esgotar o debate no seu sentido específico, se atendo principalmente às questões mais gerais a partir da concepção marxista-leninista de organização política.

Antes de qualquer apontamento, é importante frisar que os comunistas não nutrem qualquer ilusão com o modelo da democracia burguesa e seus mecanismos processuais de difusão estrutural e superestrutural na manutenção de sua dominação, nos âmbitos jurídicos e econômicos, etc. Não é prudente, portanto, aos revolucionários nutrir qualquer valor ilusório de avanço na direção da superação das contradições do sistema capitalista dentro da ordem. Isso é um ponto que precisa ficar em evidência para que possamos compreender com qualidade as limitações estabelecidas nas instâncias mais básicas do conglomerado de forças da burguesia. Entretanto, vale mencionar também que esse conglomerado de forças na atual forma de organização social não se apresenta tão ‘preto no branco’, senão dentro de um hegemonismo de forças que se confundem no emaranhado de outros tantos processos técnicos e particulares da moderna sociedade de classes. Isso significa observar com atenção para os pormenores da própria distribuição dos instrumentos de deliberação política dentro da ordem que possibilitam algumas formas de articulações para disputar a consciência do proletariado, mesmo sendo um conteúdo primário na tentativa de debates em nível do entendimento de classe em si. O salto no desenvolvimento de classe em si até classe para si, nesse sentido, não cabe no interior dessa construção; não há espaços para a ilusão de qualquer outra política mais avançada em direção à autonomia da classe trabalhadora nesses aspectos.

Somente os liquidacionistas — como acusava Lênin — seriam loucos de abrir mão da legalidade num sonho idealista de rebeldia infantil. O líder bolchevique nos diz que é preciso manter uma transição entre legalidade e ilegalidade. Um partido comunista ou uma organização comunista jamais devem apresentar seu programa e sua estrutura política abertamente para a repressão (toda democracia burguesa está há um passo da autocracia), mantendo-se assim em determinadas áreas do âmbito marginal, na ilegalidade. Por outro lado, não é possível se furtar de disputar os espaços imediatos de confronto de interesses no âmago da classe trabalhadora, sejam organizações de bairros, sindicatos, movimento estudantil, espaços de imprensa, frentes de massas e etc. Esses são mecanismos de lutas importantíssimos para organizar os desorganizados, dirigir o movimento e se colocar lado a lado nas lutas mais sentidas pelo povo.

O processo eleitoral cumpre um papel diferente das demais ferramentas apresentadas anteriormente, mas também possuí papel de influência no processo de disputa ideológica e confronto com a hegemonia burguesa. Afinal, as eleições ainda fazem sentido para o povo. Evidentemente que esse não é o campo de maior importância para a classe trabalhadora e não deve ser a batalha final dos comunistas. De igual modo, é necessário que se entenda as particularidades dessa disputa. Não é possível descartar a função imediata e em curto prazo no interior desse evento. Ainda que os papéis das eleições não signifiquem qualquer avanço na disputa pelo poder (no sentido de direção concreta da estrutura econômica do sistema vigente), ela carrega alguns elementos que devem ser pensados: 1) um futuro de afrouxo ou asfixiarão de forma voraz ainda mais a classe trabalhadora; 2) irá decidir em ultima instância projetos políticos que podem significar um balanço considerável na vida do povo; 3) representará a face democrática-burguesa dentro da ordem, cumprindo o papel de tentar coibir o maior recrudescimento das condições das massas e possível fechamento do sistema.

Apesar de esses elementos serem um importante expoente para a compreensão do papel eleitoral, não deve ser papel dos comunistas alçar cargos dentro do extrato da democracia burguesa como profissão, senão apontar figuras que possam assegurar o condicionamento mínimo para que o proletariado possa continuar se organizando e buscando disputar os espaços dentro e fora da ordem. É nesse sentido em que escrevem Marx e Engels na “Mensagem da Direção Central à Liga dos Comunistas”, em 1850:

“Por toda a parte, ao lado dos candidatos democráticos burgueses, sejam propostos candidatos operários, na medida do possível de entre os membros da Liga e para cuja eleição se devem accionar todos os meios possíveis. Mesmo onde não existe esperança de sucesso, devem os operários apresentar os seus próprios candidatos, para manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido. Não devem, neste processo, deixar-se subornar pelas frases dos democratas, como por exemplo que assim se divide o partido democrático e se dá à reacção a possibilidade da vitória. Com todas essas frases, o que se visa é que o proletariado seja mistificado. Os progressos que o partido proletário tem de fazer, surgindo assim como força independente, são infinitamente mais importantes do que o prejuízo que poderia trazer a presença de alguns reaccionários na Representação”.

Tais apontamentos ganham peso quando se observa nossa condição particular: as eleições atuais não são comuns e devem cumprir com um papel diferente das eleições anteriores; as disputas eleitorais no âmbito municipal carregam o caráter da fascistização bolsonarista, que quer ganhar todos os cantos do Brasil. Ainda que o caráter fascista não precise das eleições em sua própria face anti-democrática, o partido fascista busca se legitimar através das ferramentas comuns e processuais burguesas. Isso é evidenciado de forma qualitativa através da recente nota do PCLCP¹ sobre as eleições:

“A resistência à ofensiva fascista passa, em primeiro lugar, por organizar e mobilizar as massas para lutar por suas reivindicações; que são muitas, históricas e imediatas: reforma agrária; defesa do ambiente saudável, agroecologia e biodiversidade; medidas contra o desemprego; defesa e ampliação das liberdades democráticas e dos direitos sociais; defesa e revitalização-reorganização dos serviços públicos (educação, SUS, moradia, transportes, direito à cidade, cuidado das crianças e idosos); revogação do Teto dos Gastos Públicos (EC 95/2016); defesa da soberania nacional; auditoria da dívida pública; reestatização das empresas estratégicas; revogação das (contra)reformas trabalhista e da previdência; luta contra as formas de opressão de classe, gênero e raça; exigência do cumprimento do Plano da Frente pela Vida (Abrasco) contra a Pandemia, e, enfim, combate contra todas as políticas reacionárias do Governo Bolsonarista.

A luta para barrar o processo de autogolpe está ligada à organização e mobilização das amplas massas proletárias e populares nestas lutas por suas reivindicações e à elevação do seu nível de consciência. Só assim será possível colocar um fim no Governo neofascista de Bolsonaro e criar as condições para que o país possa seguir um novo rumo: democratizante e emancipador. O fascismo tem que ser derrotado não só politicamente, mas nas suas bases econômico-sociais através das necessárias transformações anti-imperialistas, antimonopolistas e antilatifundiárias”.

É preciso que tenhamos esses elementos claros para avançar no entendimento da importância das eleições dentro da ordem. Os esquerdistas (termo leninista) que desprezam o processo eleitoral e os pequeno-burgueses que apregoam o radicalismo e esbravejam o boicote eleitoral só conseguirão colher a derrota. Não há vitórias para o proletariado na omissão, no puro denuncismo. Para além da oposição pela oposição e da denuncia, o trabalhador busca por propostas, por soluções e por engajamento da sua realidade política e econômica. E não precisamos cair em carreirismos e reformismos para defender tal posição, é preciso buscar compreender as lutas mais sentidas do povo, pois a finalidade no interior dessa instância é e não pode deixar de ser a exposição da luta de classes. Álvaro Cunhal tentou sintetizar a importância de travar esse debate no âmbito do PCP, afirmando que

“O PCP (…) não teria resistido às constantes ofensivas da repressão, não teria renovado constantemente os seus quadros e efetivos, não teria ganho profundas raízes na classe operária, na população laboriosa, na juventude, nos intelectuais, não teria podido dirigir a luta da classe operária e das massas populares ao longo dos anos, se à atividade clandestina não tivesse sempre associado as formas de organização e ação legais e semilegais. Se o não tivesse feito, teria tido a sorte de tantas e goradas tentativas de organização e atividade clandestinas de grupos do radicalismo pequeno-burguês: uma breve tentativa, uma breve aparição, o fracasso, o desaparecimento”.

Quer dizer, a tarefa dos comunistas dentro da institucionalidade burguesa, deve ser sempre tática, não necessariamente estratégica. Não é possível que se tenha dentro da ordem a esperança de uma construção verdadeiramente emancipada no longo prazo. Mas sem essas condições, o próprio movimento comunista pode desaparecer, pois ficará a cabo unicamente da marginalidade e pouco conseguirá intervir de forma qualitativa nas lutas gerais do proletariado. A construção do socialismo e a superação do capitalismo deve ser o papel fundamental dos comunistas, que requer um esforço laboral e intelectual de grande importância. No mesmo sentido, Luiz Carlos Prestes respondia durante sua entrevista ao Roda Viva de 1986 que “lutando pelo socialismo, nós temos que participar da vida política da nação e temos que participar, portanto, dessa vida ainda dentro do capitalismo enquanto não é possível fazer a revolução; por que a revolução não se faz quando quer, no Brasil por exemplo, é indispensável (…) em primeiro lugar a democracia para o povo. (…) Não se faz revolução sem democracia”. Na conjuntura atual essa fala faz um sentido abissal. Hoje, dada às condições de organização das massas e a crescente fascistização no país, muito do esforço de oposição é justamente o de tentar garantir que se cumpra o mínimo da democracia burguesa. É melhor termos uma semidemocracia do que democracia nenhuma — pontua Florestan — afinal, “nesta, nem os sindicatos nem o movimento operário podem se manifestar com alguma liberdade e crescer naturalmente” (O que é revolução, 1981).

Até mesmo a revolução de outubro de 1917 teve auxilio anterior nas próprias disputas dentro da ordem, que permitiram a possibilidade dos comunistas conseguirem entrar nos quartéis e dialogar com os soldados sobre as condições do povo russo. É nesse contexto em que Lênin defende a participação dos comunistas nas eleições da Duma:

“O que nos importa não é assegurar por meio de negociatas um lugar na Duma. Ao contrário, estes lugares só são importantes na medida em que possam contribuir para desenvolver a consciência das massas, elevar o seu nível político, organizá-las, não em nome da placidez filisteia, da «tranquilidade», da «ordem» e da «prosperidade pacífica (burguesas)», mas em nome da luta, da luta para conquistar a plena libertação do trabalho de toda a exploração e opressão. Só nesta medida são importantes para nós os postos na Duma e toda a campanha eleitoral”.

A importância das eleições atuais significa disputar a consciência das massas contra a oligarquia e contra o polo autocrático localizado na extrema-direita. É preciso que sejam observados pelo povo aqueles que conseguirão defender os direitos até então conquistados dentro da ordem, contra um regresso voraz das pautas mais basilares. Tem como caráter indicar candidatos capazes de dar cabo nas lutas imediatas das massas, que perpassa conjuntamente as condições gerais e nacionais. Evidentemente que não se espera com isso a cristalização dos partidos eleitoreiros e reformistas, que carregam unicamente o idealismo de reformar o capitalismo. Os comunistas visam com as eleições se colocarem em disputa contra a hegemonia e travar o combate mais imediato dentro da luta de classes. Não é prudente negar o valor tático por detrás dessa ferramenta, que nos dá dentro da estratificação capitalista mecanismos de intervenção importantes para construir o movimento proletário organizado em direção à superação das estruturas (capital monopolista, latifúndio e o imperialismo) de dominação em nosso país. Portanto, assim como uma leitura dialética da realidade concreta das coisas, os comunistas tem o papel de buscar o avanço no interior da contradição eleitoral, alçando a garantia da contínua organização da classe trabalhadora para travar as lutas mais gerais e imediatas do proletariado dentro e fora da ordem. Negar esses elementos, é negar a própria substância da construção revolucionária e o afastamento da vida política da classe trabalhadora. Nesse contexto, os comunistas disputam e indicam candidatos para as eleições.

Referencias:

Nota do PCLCP: AS ELEIÇÕES, O ANTIFASCISMO E O FUTURO. Disponível em <http://acoluna.org/2020/08/06/as-eleicoes-o-antifascismo-e-o-futuro/>

Álvaro Cunhal — “Formas legais e ilegais de Organização e de Luta”. Disponível em <https://traduagindo.wordpress.com/2020/08/03/alvaro-cunhal-formas-legais-e-ilegais-de-organizacao-e-de-luta/?fbclid=IwAR1ZxG8cZmRb07REWaW-YFZEU6JDolVQBxHizDqu6JVYcaoJZk-l_J8HMrk>

Marx/Engels, “Mensagem da Direcção Central à Liga dos Comunistas”. Disponível em <https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/03/mensagem-liga.htm>

Qual é a Atitude dos Partidos Burgueses e do Partido Operário Frente às Eleições para a Duma?. Disponível em <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1906/12/31.htm>

O Que é Revolução, Florestan Fernandes. Disponível em <http://files.gocufg.webnode.com/200000082-63a06649b8/oqueerevolucao_0.pdf>

Roda Viva com Luiz Carlos Prestes, em 1986. Disponível em <https://youtu.be/aKkCysZb0V0>

Notas:

[1] — Historicamente o Polo Comunista Luiz Carlos Prestes, organização comunista que tem sua origem no grupamento que se reunia em torno do líder comunista Luiz Carlos Prestes, guiados sobre a linha marxista-leninista, sempre manteve sua organização e participação na luta política no país até os dias atuais.

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