Trabalho como Categoria Fundante do Ser Social

Autores: Hugo Alves e Pedro Nogarolli.

Esse texto de inicio parecerá muito mais academicista do que realmente importante para o conhecimento revolucionário, porém, ao longo da leitura, os leitores devem perceber que o intuito real desse texto é desmentir as falácias de que o ser humano possui uma essência pre-determinada em sua consciência, ou seja, que possui uma natureza humana fixa e inalterável, que faz muitos caírem em uma concepção metafísica da realidade concreta-ontológica.

A ontologia marxista tem três esferas ontológicas: A esfera inorgânica, a esfera biológica e a esfera do ser social. A esfera inorgânica, ou matéria inanimada por assim dizer, é aquela na qual está maior parte da matéria que compõe o mundo material objetivo, é a esfera que não tem vida e não pode se reproduzir, apenas se transformar em outro elemento inorgânico de acordo com seu ambiente e seu estado físico. A esfera biológica é uma esfera que já é mais complexa do que a primeira, é uma esfera que já é composta por seres que possuem vida, ou seja, seres que já podem reproduzir descendentes férteis e já agem sobre o ambiente no qual vivem. E por fim temos a esfera do ser social, que é o nosso foco aqui. Esta é com certeza a esfera mais complexa de todas, pois esta já não é mais representada apenas pela reprodução biológica, mas sim já possui ações mediadas por sua consciência, ou seja, é um ser que não mais tem sua ação como um mero epifenômeno da processualidade objetiva, mas um ser que consciente de suas ações, é capaz de escolher as melhores alternativas durante a transformação da realidade concreta. Apesar dessas esferas serem ontologicamente distintas, ou seja, não haver uma identidade, há uma unitariedade, pois as esferas superiores dependem das inferiores. A esfera biológica não poderia existir sem que houvesse a esfera inorgânica, visto que o mesmo surgiu a partir desta(não

há uma exatidão de como isso aconteceu) e sobrevive usufruindo dessa, já que precisa da mesma para sua subsistência. Assim como a esfera do ser social não existiria sem as duas anteriores, uma vez que esta necessita da esfera biológica de modo que se reproduza para dar continuidade a sua existência e também precisa da esfera inorgânica igualmente para subsistir. Não há uma relação identitária, ou seja, onde as esferas são qualitativamente iguais, porém há uma unitariedade na qual uma necessita da outra para existir, ou “unidade dos contrários”.

O ser social tem como sua categoria fundante o trabalho, ou seja, ele funda a si próprio, quebrando o mito de que há uma natureza humana pré-determinada e que isso impede de nós transitarmos para o socialismo e posteriormente o comunismo. Devemos deixar claro que o trabalho como categoria fundante do ser é diferente do trabalho abstrato, pois enquanto o primeiro representa o elemento chave que compõe a esfera do ser social, o segundo já refere-se ao trabalho produtivo e improdutivo, aquele que geralmente é remunerado. O que é o trabalho como categoria fundante do ser social? Por mais que os animais mais evoluídos dentro da esfera biológica, como o macaco por exemplo, consigam já ter ações semelhantes as do homem, como por exemplo usar alguns instrumentos para colher frutas ou atacar seus inimigos, eles jamais conseguiram criar tais instrumentos. O trabalho ao qual nos referimos é a capacidade do homo sapiens sapiens, o único ser que possui consciência dentre os milhares catalogados pela ciência, de previamente idealizar objetivamente suas ações antes de coloca- las em prática, ou seja, diferente de todas as outras espécies, o ser social é capaz de investigar o meio no qual vai transformar para assim poder transforma-lo da melhor forma possível, para que assim possa exterioriza-la. As estruturas das colmeias feitas pelas abelhas deixam muitos arquitetos com inveja, mas o que difere as melhores abelhas que fizeram as colmeias dos piores arquitetos? Os segundos são capazes de ter uma previa-ideação antes de transformar determinado ambiente, enquanto as primeiras apenas se adaptam ao seu respectivo ambiente com suas determinações. Toda a ação do homem é um por de um fim, ou seja, é uma teleologia. Diferente do que alguns idealistas e materialistas vulgares pensam, não há teleologia na história ou em qualquer outro âmbito, mas apenas no âmbito do ser social. A teleologia é algo intrínseco ao mesmo e só existe no mesmo. O homem, como um ser que funda a si próprio através do trabalho, possui absolutamente em todas as suas determinações como transformador de uma realidade concreta um objetivo final, uma finalidade, tal qual foi previamente idealizada objetivamente como meio de resolver alguma situação concreta. A exteriorização é o momento do trabalho através do qual a subjetividade, com seus conhecimentos e habilidades, é confrontada com a objetividade a ela externa, à causalidade. As causalidades naturais são as causalidades auto dinâmicas e que possuem determinações próprias. Quando o homem transforma um meio, não mais será uma causalidade natural, mas sim uma causalidade posta, pois foi posta pelo homem que tem como princípio obter um fim, e este fim foi o que guiou o mesmo a ter determinada ação. O processo dialético entre a causalidade e a teleologia é o que constitui o trabalho, categoria fundante do ser social. Assim como nas esferas ontológicas, há uma unitariedade entre o sujeito(transformador) e o objeto(o que é transformado). O objeto criado pelo sujeito é ontologicamente distinto do seu criador, porém o mesmo não poderia ter sequer existido sem uma prévia-ideação objetivada e por conseguinte exteriorizada pelo sujeito, assim como o sujeito não poderia transformar a concretude sem que houvesse esse objeto como reflexo de sua exteriorização.

Por isso devemos ter muito cuidado quando nos referimos a relação entre sujeito e objeto na ontologia

marxista, pois pode-se confundir com a “identidade sujeito-objeto” hegeliana, na qual o sujeito e o objeto são ontologicamente iguais, ou seja, por mais que o objeto só exista devido ao seu criador, eles serão qualitativamente distintos. Devemos ressaltar que para transformar uma determinada concretude, o sujeito deve ter o conhecimento necessário para realizar com êxito sua transformação, que é o que é chamado de “intentio recta”. Sem essa característica, uma transformação não poderá atingir seus objetivos finais do modo como o sujeito idealizou previamente, ou até pode, porém de uma forma diferente.

Enquanto os seres biológicos têm suas ações limitadas dentro dos seus respectivos ambientes, ou seja, agem através do instinto, o ser social é capaz de complexificar cada vez mais a sociabilidade e complexificar sua própria práxis, ou seja, enquanto o homem transforma a sociabilidade na qual vive, transforma a si mesmo, já que agora sua transformação concreta faz parte da sociabilidade e através dela o homem o homem desenvolve novos conhecimentos e novas habilidades que não possuía anteriormente, em termos mais filosóficos, o homem também é capaz de elevar o seu ser-para-si incessantemente e conhecer sua própria história. As singularidades das prévias-ideações objetivadas tornam-se algo genérico. Isso acontece porque quando algo singular previamente idealizado objetivamente se exterioriza como concreto passa a pertencer não só ao trabalho, mas a toda a totalidade social. A prévia-ideação objetivada do ser-precisamente-assim existente é uma singularidade em resposta a uma situação concreta(social genérica), e tal prévia ideação só é possível devido a confronto entre o passado(o conhecimento obtido para gerar a prévia-ideação, ou intentio recta), o presente(a situação concreta) e o futuro(objetivo pela qual a prévia-ideação foi criada), ou seja, a singularidade da prévia-ideação é também um elemento genérico, pois a história do objeto criado pela prévia-ideação objetiva, ao alterar o existente, mesmo que infimamente, ganha dimensões genéricas e agora participa de uma totalidade. E através dessa generalização do trabalho é que o homem desenvolve a sociabilidade e as relações sociais, de tal forma que uma simples singularidade de uma prévia-ideação objetiva, poderia mudar o rumo de toda a história através de um encadeamento de processos causais que gerariam outras prévias-ideações e consequentemente outros processos causais. ou seja, uma ação teleologicamente determinada, tanto na prévia-ideação objetivada(faz uma junção entre passado, presente, e futuro) quanto na exteriorização(a prévia-ideação exteriorizada em objeto, tal qual, mesmo que infimamente, quando altera o existente, torna-se algo genérico, pois começa a fazer parte de toda uma totalidade) são singularidades que são convertidas em generalizações.

Devemos ressaltar que o futuro, por ser justamente algo que ainda não aconteceu, não

necessariamente será o que previamente idealizou-se pelo sujeito, ou seja, a teleologia é um jogo de tentativa e erro(é muito importante entender isso para não cair em determinismos).

Segundo Aristotéles no Ética a Nicômaco, as disposições de caráter são produtos do hábito. O trabalho é o hábito que mais toma tempo do homem na história. Por causa dessas verdades simples, o trabalho funda a humanidade do homem, ou seja, “antropologiza” elementos naturais. Desde os costumes, os símbolos sexuais, a cultura, a beleza, o direito, a religião — toda a superestrutura é condicionada pela categoria fundante do homem: o trabalho e suas relações sociais especificas e históricas.

Além da teleologia primária, que foi a abordada acima, temos a teleologia secundária. A teleologia secundária é o que fica conhecida dentro do marxismo como “ideologia”, já que o homem vai além do trabalho, formando complexos de complexos, porém todos os complexos sociais de uma forma ou de outra são provenientes da ação consciente do homem, ou seja, do trabalho. Toda a totalidade material é composta por sínteses de múltiplas determinações, portanto medida que o homem complexifica a totalidade social e a si mesmo, é necessária uma mudança em relação a teleologia, que deixa de ser uma simples transformação do concreto, e passa a induzir os sujeitos a transformarem o concreto de uma dada forma, ou seja, referimo-nos agora ao fato de algumas ideias jogarem um papel-chave na escolha das alternativas a ser objetivadas em cada momento histórico. Tais ideias compõem, sempre, uma visão de mundo, e auxiliam os homens na tomada de posição ante os grandes problemas de cada época, bem como ante os pequenos e passageiros dilemas da vida cotidiana. A diferença qualitativa entre as posições teleológicas voltadas à transformação da natureza e aquelas que buscam provocar determinados atos em outros indivíduos está no fato de que as primeiras detonam uma cadeia causal, enquanto as secundárias colocam em movimento uma nova posição teleológica. Isto faz com que o grau de incerteza, o leque de alternativas ao desdobramento do processo, seja qualitativamente maior no caso das posições teleológicas secundárias do que no caso das posições teleológicas primárias. Estas têm a ver com os nexos causais existentes, aquelas concernem à escolha entre alternativas pelos

indivíduos. É desta teleologia que surge complexos como o direito, que nada mais é do que uma forma da classe dominante fazer uma manutenção dentro da sociedade de modo que controle na medida do possível as contradições e controle também a classe dominada.

Como o homem funda a si próprio através do trabalho e como o conjunto de relações sociais são a essência da humanidade, consequentemente o modo como o homem vai realizar o trabalho é determinado por tais relações sociais, que por sua vez são determinadas pelo modo de produção que rege a sociedade, portanto não há nenhuma barreira intransponível que restrinja a sociedade transitar do capitalismo para o socialismo e posteriormente para o comunismo, pois o ser social não pode ser reduzido a um ser que possui uma consciência predeterminada mesmo antes de sofrer condicionamentos do concreto, uma vez que isso seria negar as diferentes determinações subjetivas do ser social perante a sociabilidades diferentes ao longo da história, bem como afirmar que todos os seres humanos são iguais e possuem a mesma essência.

Fonte: Para uma ontologia do ser social 2 — Gyorgy Lukács.

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