Você precisa mesmo de cada vez mais desempenho e positividade?

Os cuidados com o desenvolvimento pessoal embalado e vendido como um produto.

9 min readMar 6, 2019

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Pouco tempo pra muita coisa pra fazer. Muito incentivo pra se produzir mais, melhor e mais rápido. Sem que a gente nem se questione o porque.

Muito sentimento de culpa por “desperdiçar tempo útil” e ser pouco produtivo. Pouca contemplação e muita ação quase sempre sem saber o motivo.

Uma eterna sensação de cansaço e de que nada parece ser suficiente, que não é exclusividade sua e nem minha, mas um problema de todo mundo moderno, que transforma doenças como a depressão e a síndrome de burnout em epidemias mundiais.

É a sociedade voltada para a performance, para a ação, para o espetáculo, para a tentativa de “vencer na vida”. Que transformou o desenvolvimento pessoal num produto a ser vendido. É a sociedade do desespero e do imediatismo. Como chegamos até aqui, e, precisamos mesmo disso?

I. A Sociedade do Desempenho

Em “A Sociedade do Cansaço”, pequena mas muito bem construída obra de Byung-Chul Han, somos apresentados aos reflexos dessa nossa atual sociedade voltada para a performance.

Han denomina essa como a sociedade do desempenho, baseada no imperativo da positividade e na exploração do homem sobre si mesmo, até o esgotamento.

“A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar (de Foucault), mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos.

Han segue refletindo sobre a mudança de paradigma da sociedade, mostrando que no lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação.

“A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados.

E vai além, citando Alain Ehrenberg, responsável por localizar a depressão nessa mudança.

“A carreira da depressão começa no instante em que o modelo disciplinar de controle comportamental, que, autoritária e proibitivamente, estabeleceu seu papel às classes sociais e aos dois gêneros, foi abolido em favor de uma norma que incita cada um à iniciativa pessoal: em que cada um se comprometa a tornar-se ele mesmo. […] O depressivo não está cheio, no limite, mas está esgotado pelo esforço de ter de ser ele mesmo”.

Vivemos numa época onde não existem mais referências comuns de fora pra dentro. As referências passaram a ser internas: cada um decide o que é bom e o que é mau. Isso não está mais fora do sujeito, está dentro dele.

Somos chefes de si próprio. Perseguimos nossa melhor versão e o sucesso, e quando não alcançamos — o que é provável que aconteça, já que a vida real é dura e não está nem aí para seus planos— somos os únicos culpados pelo nosso próprio fracasso.

Essa acaba sendo, segundo Han, uma nova forma de violência causada pelo excesso do positivo, da motivação e do desempenho.

O que acaba nos levando a uma liberdade paradoxal:

“O sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si mesmo. Assim, não está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. (…) A queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. (…) O explorador é ao mesmo tempo o explorado.”

Estamos tomados por essa busca por mais produtividade e desempenho, além de constantemente sermos bombardeados com incentivos para buscar o tal algo a mais.

Alta performance, novas técnicas de produtividade, quanto disso realmente precisamos? E quanto dessa busca por ser mais produtivo é apenas um desejo de nos sentirmos menos culpado?

Quanto desses discursos motivacionais e encorajamentos sobre descobrir nosso propósito maior, correr atrás de mega objetivos e não desistir dos nossos sonhos, são ingênuos e até irresponsáveis?

II. A armadilha do mais, da adição, da positividade

“quando você não sabe o que quer, MAIS se torna o padrão.” ~ Ryan Holiday

Sonhos são importantes, mas não são tudo.

Ter uma grande estratégia de vida é até desejável. Uma visão de longo prazo saudável fornece direcionamento e ajuda nas decisões do dia a dia. Com um sonho bem definido em mente, podemos ter mais facilidade para definir essa estratégia de vida.

Hoje, porém, além de se falar muito em “achar o seu propósito”, “conquistar grandes objetivos” e “correr atrás dos sonhos” como algo primordial para o alcance do sucesso e da felicidade, muitas vezes gurus e outras pessoas bem intencionadas ou não, se referem a essas visões de forma pouco saudável.

Primeiro porque a vida real não está nem aí para seus sonhos e seu propósito. Segundo que a grande parcela da população está mais preocupada em suprir suas necessidades básicas que nem se pode dar ao luxo de sonhar.

E terceiro, pouco se fala sobre as pessoas que não tem esses alvos bem definidos, o que é bem comum.

Quando não temos essas direções, e nem uma visão pessoal mais clara sobre sucesso e felicidade, o mais se torna o padrão.

Nosso desejo por mais não descansa. Disso, podemos ter certeza. O conceito chamado de adaptação hedônica, que mostra que sempre nos acostumamos com o que temos e buscamos continuamente mais para satisfazer o sentimento de felicidade, explica bem esse padrão.

Desejamos sempre mais, mais e mais, sem questionar se esse desejo é válido. A felicidade é relativa e ainda assim, perseguimos esse sentimento de forma incansável sem nos questionar se o que já temos não é satisfatoriamente o bastante.

Na tentativa de alcançar resultados melhores, caímos no padrão de adicionar elementos — mais tarefas, mais metas, mais hacks de produtividade, mais consumo, mais e mais — mesmo que de forma prática, resultados melhores possam ser gerados também pelo não fazer — ações negativas.

Entramos na eterna busca do mais. Da adição. Ou da positividade, como também demonstra Han na sua obra:

“O desaparecimento da alteridade significa que vivemos numa época pobre de negatividades. É bem verdade que os adoecimentos neuronais do século XXI seguem, por seu turno, sua dialética, não a dialética da negatividade, mas a da positividade. São estados patológicos devidos a um exagero de positividade.”

“[…]A depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade. Reflete aquela humanidade que está em guerra consigo mesma.”

Han também relaciona esse excesso de positividade com a era da informação e a economia da atenção.

“O excesso de positividade se manifesta também como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura e economia da atenção. Com isso se fragmenta e destrói a atenção.”

É nesse momento que ele passa a abordar como a crescente sobrecarga de trabalho nos leva a abraçarmos a multitarefa, além de mantermos uma atenção dispersiva e uma baixa tolerância ao tédio.

Han mostra como é um retrocesso a nossa atual falta de capacidade de se aprofundar num estado contemplativo e passa a explorar os conceitos de vida ativa e vida contemplativa, citando Hannah Arendt, Nietzsche e Cícero e mostrando como ambas são necessárias, apesar de termos esquecido da segunda. A vida ativa deve levar-nos à contemplação e, a contemplação, partindo daquilo que contemplamos interiormente, deve reconduzir-nos para a atividade.

Precisamos descansar, precisamos do tédio, precisamos fazer nada, no sentido de contemplar. Nos cobramos sempre a produzir mais, com cada vez mais frequência.

Mas como já dizia Nietzsche:

“Por falta de repouso, nossa civilização caminhará para uma nova barbárie.”

Ou como argumenta Han:

“Devemos aprender a ler, devemos aprender a pensar, devemos aprender a falar e a escrever. A meta desse aprendizado seria, segundo Nietzsche, a “cultura distinta”. Aprender a ver significa “habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-aproximar-se-de-si”, isto é, capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento.”

Qual foi a última vez que você se permitiu isso? Qual a última vez que se entregou a um profundo estado contemplativo, sem distrações, sem tentar parecer ou se sentir produtivo? Sem tentar buscar aquele “mais”?

Mais desempenho no sentido de desenvolver cada vez mais nosso potencial humano é uma busca justificável e até louvável. Mas quando essa busca passa a ser baseada naquele discurso de “você pode tudo” e você tem que “vencer na vida”, a busca torna-se perigosa.

III. Desenvolvimento pessoal na sociedade do espetáculo

“Todas as sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação.” ~ Guy Debord

É dessa forma que Guy Debord inicia sua obra “A Sociedade do Espetáculo”, um livro 50 anos mais antigo que o de Byung-Chul Han mas que também descreve de forma precisa nossa sociedade atual.

O desenvolvimento pessoal parece que virou mais um artefato dessa sociedade do espetáculo. Se tornou um hobby glamourizado e glorificado. Queremos, acima de tudo, mostrar pro mundo que estamos tentando evoluir, mais do que propriamente buscando alguma evolução.

Se tornou um desenvolvimento pautado por aparências e por um discurso de autoajuda barato, de excesso de positivismo, de mais desempenho a qualquer custo.

Um discurso que nos faz acreditar que existe algo além e que devemos evoluir todo dia, acordar sempre 1% melhor, perseguir a melhoria contínua apenas por que é assim que deve ser, sem um motivo saudável que justifique isso tudo. O desenvolvimento pessoal virou uma espécie de busca em si mesmo.

Isso acaba fazendo com que essa jornada de evolução pessoal muitas vezes assuma uma conotação pejorativa, caindo naquela noção de autoajuda cheio de blá blá blá, mesmo que, pelos motivos certos, seja uma jornada legítima, fundamental e natural.

O que se observa é que pautamos essa nossa jornada por melhoria pela ótica dos jogos finitos, aquele onde há vencedores. São esses os jogos que alimentam a sociedade do espetáculo e a sociedade do desempenho.

“Jogos finitos” é um conceito explorado por James P. Carse em seu livro “Jogos Finitos e Infinitos”. Para ele, existem essas duas formas de jogar o “jogo da vida”.

Jogos finitos são aqueles limitados pelo tempo, pelo espaço e por regras que exigem um controle absoluto de cada partida e nos quais pode se observar um ganhador ou perdedor. Nesse tipo de jogo o que importa é derrotar o rival, conquistar a vitória e encerrar o jogo.

Todo mundo enfrenta uma série desses jogos ao longo da vida. São jogos importantes onde ter vencedores e perdedores são necessários em alguns contextos.

Jogos infinitos, por sua vez, são o contrário. Não existem regras claras, a regra quem faz é você. Não existem limites nem fronteiras cerceando sua liberdade. Aqui o jogo é mais importante do que os resultados. Mais do que ganhar, o importante é continuar jogando.

Um dos grandes erros da nossa sociedade atual, é acreditar que a vida é um jogo finito, ou seja, que podemos “vencer na vida”. É a partir desse pensamento que surge toda essa onda de coaches, influencers e gurus com seus incentivos e “produtos” que nos empurram para a armadilha do mais e da autoexploração.

Quando encontrar alguém insistindo nesses discursos, questione. Quando se pegar a si próprio se cobrando a fazer mais e ir além, influenciado por essas mensagens, questione o real motivo e necessidade desse desejo.

Você pode — e até deve — ter seus sonhos, seus grandes objetivos e seu propósito, assim como ter uma vida ativa, mais voltada para a ação e para a alta performance. Isso tudo vai ajudar mas não é o único caminho, talvez nem o mais importante.

É clichê falar isso mas o mais importante é aproveitar a caminhada seja ela qual for. Você só precisa de um mínimo de direcionamento e aproveitar o caminho enquanto…caminha.

Basta decidir em que jogos finitos entrar, entender que seu sonho também envolve escolher algo infinito que te mantenha jogando ao mesmo tempo em que aproveita a partida principal da vida.

Cuidado com a noção de desenvolvimento pessoal embalado e vendido como um produto que ensina o passo a passo para ser feliz e bem sucedido. Isso não existe.

Tornar-se alguém melhor é missão para vida inteira; é um processo contínuo. E não é um processo de apenas mais desempenho, produtividade e positividade a qualquer custo. Mas também de contemplação, de descanso e de reflexão.

“Caminante, no hay caminho/, se hace camino al andar” ~ Antonio Machado

Se mantenha caminhando. E aproveite o passeio.

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