A vulnerável fronteira dos limites da Liberdade de Expressão Online

Filipe Martins Evangelista
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9 min readNov 6, 2023

De que forma a cultura digital e a facilidade de acesso às plataformas online contribuem para a crescente disseminação do discurso de ódio acerca das Marchas LGBT+ na cidade de Lisboa?

Liberdade de Expressão Online; Discurso de Ódio; Cultura Digital; Comentários de Ódio; Marchas LGBT+ em Lisboa

“As redes sociais apresentam diversas possibilidades para que as comunidades LGBT mantenham relações poderosas, uma vez que possibilitam uma participação ativa da comunidade e permitem uma ligação entre os elementos da mesma.” (Han et all, 2019)

“Qualquer pessoa que utilize o espaço online pode ser vítima de cyberbullying.” (McNeal et all, 2018)

“No entanto, os utilizadores mais propensos a tal são os que pertencem a minorias. No caso das minorias sexuais incluem-se mulheres lésbicas, homens homossexuais, homens e mulheres bissexuais, homens e mulheres transexuais, indivíduos que questionam a sua sexualidade e, ainda, os queer.” (Mhhize et all, 2020)

A citação destes aspetos teóricos reflete a pertinência da abordagem dos direitos das pessoas LGBT+ no espaço online. Existe um paradoxo entre a crescente verbalização e conscientização acerca da importância do movimento, e o facto de as pessoas que o integram ainda sofrerem “cerceamento à liberdade de expressão, restrições ao exercício dos direitos de liberdade de associação e reunião” (Livres & Iguais — Nações Unidas, n.d.).

Considerando a ideologia de que, no online, a fronteira entre os limites da Liberdade de Expressão é cada vez mais ténue, como pode a questão do estudo dos comentários de ódio em direção à comunidade LGBT+ ganhar representatividade nessa tese?

A questão central deste estudo tem como ponto de partida a análise da variação quantitativa dos comentários de desapoio ao evento e à comunidade, através da análise de conteúdo na página de Facebook “Marcha do Orgulho LGBT+ de Lisboa”. Os dois momentos em análise compreendem o período de dois dias antes até dois dias após o dia da celebração da marcha, nos anos de 2019 e 2023. Para compreender o fenómeno desta variação no discurso online, esta investigação requer uma abordagem interdisciplinar que considera como os media, a tecnologia e a comunicação afetam a sociedade contemporânea. O objetivo principal é determinar se a página do Facebook da Marcha do Orgulho LGBT+ de Lisboa reflete as tendências teóricas identificadas.

Ao analisar os comentários presentes na página do Facebook em questão, identificamos diferentes tipologias comentários. Entre eles, encontramos muitos que se referem aos aspetos organizacionais do evento abordando, por exemplo, a localização ou os artistas musicais. Neste estudo, esse tipo de comentários não são considerados. A presente análise concentra-se, exclusivamente, nos comentários de apoio e desapoio, com ênfase especial naqueles que refletem sentimentos de ódio. Esses comentários expressam críticas de maneira pejorativa e ofensiva em relação à comunidade para a qual o evento em questão é dedicado, ou seja, a comunidade LGBT+.

No ano de 2019, na página do evento podemos encontrar comentários variados, incluindo:

  • “Se ao menos o orgulho Pride se estendesse além dos próprios umbigos.”
  • “Acho uma discriminação vocês não defenderem também aqueles/aquelas que se identificam com cães, gatos, coelhos, tartarugas e serpentes!”
  • “Ridículo.”

Além destes, foram registados dois comentários com linguagem inapropriada. O número total de comentários, considerando as categorias de apoio e desapoio, foi de 21. Destes, 7 foram de desapoio, representando uma percentagem de aproximadamente 33,33% em relação ao total de 21.

A análise de conteúdo dos comentários na mesma página, relativos ao evento de 2023, indica que cerca de 58,82% dos comentários se enquadram na categoria de desapoio. Foram registadas um total de 17 observações nesta categoria. Entre esses comentários de desapoio, muitos têm uma conotação de ódio. Alguns exemplos incluem:

  • “Uma vergonha! Podem fazer o que quiserem, não tenho nada contra, mas demonstrar afeto entre pessoas do mesmo sexo em locais com crianças e atrações infantis é inapropriado. Façam isso longe do alcance das crianças.”
  • “Políticos dizem que precisam de mais tempo para resolver os problemas que eles mesmos criaram.”
  • “Há pessoas que não respeitam o meio ambiente.”

O último comentário inclui uma imagem com notas no chão, insinuando falta de consideração com o investimento em prol da causa abordada, que é a Marcha do Orgulho LGBT+ em Lisboa. Além disso, várias discussões surgiram em resposta a comentários ofensivos, e cinco deles usaram termos agressivos e hostis em relação à comunidade.

Em suma, a análise de conteúdo quantitativa sugere um aumento, em 2023, de sensivelmente 25.49%, quando se compara a prevalência de comentários de desapoio à comunidade em relação ao ano de 2019.

As questões que se levantam são: quais os motivos que justificam esse aumento? Será que a crescente utilização dos meios de comunicação digitais pode gerar uma habituação à disseminação livre e desmedida de mensagens?

Desde logo, a expressão “o meio é a mensagem” foi cunhada por Marshall McLuhan (1964), na obra “Understanding Media”. O sociólogo canadense criou esta extensão do determinismo tecnológico, quando se dedicou a examinar a forma como os meios de comunicação interagem com a sociedade e influenciam a maneira como as mensagens são percebidas. Quando aplicamos isso aos meios de comunicação digitais, podemos associar-lhes características como a facilidade de acesso às plataformas online e à cultura digital, que moldam a forma como as mensagens são transmitidas e recebidas. O meio está facilmente acessível — basta colocar a mão no nosso bolso para alcançar o telemóvel. Assim, a mensagem também é dinâmica e de fácil e rápida transmissão e disseminação. Isso permite gerar rapidamente e sem limite qualquer conteúdo incluindo os comentários de ódio. Também Logan (2019), na sequela da tese de McLuhan partilha, no seu artigo “Understanding Humans: The Extensions of Digital Media”, que ao aplicarmos as leis dos media aos meios digitais verificamos que estes últimos se convertem em hiper-realidade, ou na perda de contacto com a natureza. Daí retemos que os meios digitais são, pelas suas características, uma forma de evasão do mundo real, como se fossem um mundo paralelo onde existe um distanciamento em relação às interações presenciais.

O valor da envolvência com a audiência e a análise do seu valor para a criação de histórias são elações que podemos retirar dos autores Jenkins et al. (2006), na obra “Cultura da Conexão”. Eles exploram conceitos como a cultura de fãs, a propagabilidade e as comunidades de movimentos populares, que ampliam a veiculação de mensagens. Os autores destacam a importância de as comunidades assumirem a “responsabilidade de educar o seu público local em relação às tradições e convenções dele”. Estas ideias enfatizam as características da cultura digital que podem promover tanto a colaboração e a comunicação positiva, quanto a criação de espaços onde o anonimato permite a expressão de negatividade, contributiva para o aumento de comentários de ódio. É de destacar, ainda, o papel fundamental da interação online entre os criadores de conteúdo na forma como as mensagens são transmitidas e percebidas pelos participantes das discussões.

Quando os utilizadores dos meios de comunicação online participam ativamente na criação, partilha e discussão de conteúdo, isso pode afetar a cultura de massa e desempenhar um papel na circulação de informações e produtos de massa. Estes factos vão ao encontro do conceito de “inteligência coletiva”, introduzido por Pierre Lévy (1997). Assim sendo, a amplificação de vozes é uma característica muito vincada dos meios de interação online, como é o caso do Facebook. “É míope o pânico da indústria com a participação do público: evitando que a cultura do conhecimento se torne autónoma. Privam os circuitos do espaço massificado (…) de uma extraordinária fonte de energia. A cultura do conhecimento serve como o motor invisível e intangível para a circulação e a troca de produtos de massa.” Neste excerto da obra “A Inteligência Coletiva: Por uma Antropologia do Ciberespaço” de Pierre Lévy (1997) é possível destacar informações que clarificam as características horizontais da comunicação online. Traçando um paralelo, aquilo que nas culturas de massa era representado de forma unidirecional, agora permite uma ampliação das vozes e das perspetivas. Os grupos chamados de minoritários, como é o caso da comunidade LGBT+ têm, agora, uma plataforma para expressar as suas opiniões e experiências. Nesses grupos, podem coexistir comentários de vários tipos, entre os quais os de desapoio. Estes comentários podem, por um lado, interferir na adulteração de perceções sociais das realidades dos utilizadores desses grupos e, por outro lado, podem ainda dar origem a negatividade e conflitos, à medida que a cultura de massa é transformada e desafiada.

Os utilizadores do grupo analisado participam em assuntos que são, maioritariamente, de cariz social. Para se exprimirem, os utilizadores apropriam-se da sua própria perceção social da realidade, sendo as opiniões de cada membro extrínsecas ao domínio documental e académico. Jenkins (2014), na sua obra “Cultura da Convergência” levanta a questão de o conhecimento, no online, não ser baseado num sistema hierárquico. Esse conhecimento provém da experiência real de vida, e não de uma educação formal. Esse conhecimento baseado na vida real é, num certo grau, mais valorizado no espaço online, como reitera o autor.

Jenkins (2014) critica a capacidade que cada membro tem de comentar as informações, sem se importar com as preferências dos outros utilizadores, contendo esse facto “uma dimensão profundamente totalitária”. Essa dimensão é percetível se analisarmos os comentários de ódio do grupo de Facebook analisado. Ele é dedicado ao apoio da comunidade mas os comentários de desapoio, profundamente impulsionados pela cultura digital, para além de constituírem um desrespeito permitem, ainda, gerar novas interações entre os membros que partilham daquela visão negativa do assunto que está em discussão.

Esse facto intrínseco ao conceito de “cultura da convergência” contribui para o aumento do número de interações entre as pessoas que partilham do ponto de vista de discordância em relação ao assunto discutido. A partir dos comentários de desapoio e de ódio veiculados no grupo das Marchas LGBT+ da cidade de Lisboa existe a possibilidade de conexão entre pessoas que partilham desse desacordo. Essas interações conduzem a novas direções, permitindo atingir outros grupos onde essas pessoas poderão discutir acerca do ódio que têm pela comunidade ou pelo evento. Esse facto é invocado pelo autor Jenkins (2014), ao referir que quando uma comunidade se dispersa, os seus membros podem-se deslocar para várias direções distintas, havendo abertura para espalhar esses pontos de vista para outras comunidades. É esta a posição dos meios de comunicação online como impulsionadores da criação de novos pontos de contato, contribuindo isso para o aumento tendencial do número de comentários de ódio.

Também André Lemos (1997), na sua obra “Ciber-socialidade: tecnologia e vida social na cultura contemporânea”, aborda o conceito de “Ciber-socialidade”. Descrevendo a dinâmica das relações sociais no mundo digital, o autor explora esse conceito analisando a forma como a Internet, em particular, afeta as interações sociais e a construção da identidade nas sociedades contemporâneas. O anonimato e a distância física típica das interações online podem conduzir a comportamentos agressivos. Algumas pessoas podem ver a internet como um espaço onde se podem comportar de forma menos inibida, sentindo-se no sítio que consideram ser o propício ao compartilhamento de comentários de ódio. Transcrevendo as palavras do autor, “A cibercultura (…) não recusa a tecnologia. Fruto da “geração X”, a sociedade contemporânea aceita a tecnologia a partir de uma perspetiva lúdica, erótica, violenta e comunitária. Nesse sentido, as comunidades virtuais, os zippies e os ravers mostram bem esse vetor de comunhão e de partilha de sentimentos, hedonista e tribal.” Estas metáforas proferidas pelo autor remetem para a existência de conflito na polarização típica das comunidades online.

Em suma, e voltando à pergunta de investigação — de que forma a cultura digital e a facilidade de acesso às plataformas online contribuem para a crescente disseminação do discurso de ódio acerca das Marchas LGBT+ na cidade de Lisboa?

A resposta abrange uma cultura cada vez mais participativa, o aumento da interatividade entre grupos, a sociabilidade e o consequente conflito, a sensação de anonimato típica das plataformas online, além da participação crescente em questões sociais e políticas. Essa participação é frequentemente motivada pelas crises políticas e económicas que o mundo atualmente enfrenta. Muitas vezes, essas crises levam os utilizadores de plataformas online a participar em grupos de discussão, por exemplo, sobre causas em que o Estado está a investir fundos, publicando comentários com o objetivo de expressar a sua discordância com esses investimentos. O caminho descrito pelos autores é, portanto, confirmado no estudo dos comentários de ódio em relação às Marchas LGBT+ em Lisboa, que mostraram um aumento significativo de 2019 para 2023.

Este estudo poderia ser complementado por bases de outras disciplinas distintas das do domínio da comunicação, nomeadamente por bases de psicologia aplicada aos media, tendo em conta que a habituação ao meio faz os utilizadores vincularem neles próprias características intrínsecas da interação no online. Um exemplo é o conceito de “efeito de desinibição online”, que John Suler cunhou ao explorar como as pessoas tendem a comportar-se de maneira mais desinibida em ambientes online. Já que a psicologia se cruza com as teorias da comunicação na abordagem destas questões, talvez seja porque o atual sistema de funcionamento online está desenhado de forma a não controlar, de forma eficiente, a disseminação dos discursos online, tornando cada vez mais ténue a fronteira da liberdade de expressão. No futuro, resta a esperança de que esse controlo vá além da possibilidade de apagar comentários ofensivos, e denunciar os utlizadores que os fizeram. A questão que se levanta é: irão as empresas de tecnologia apropriar-se da inteligência artificial para tornar mais eficazes os algoritmos de detenção de expressões típicas dos comentários de ódio, resultando isso numa luz ao fundo do túnel para que se possa inverter a tendência de aumento da disseminação ódio no online?

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