Moralismo, medo e desinformação no mês do Orgulho

fabrycio azevedo
fala bicha
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7 min readJun 19, 2018

No mês do Orgulho LGBT, muitos veículos e marcas estão tentando incluir campanhas que discutam a diversidade de gênero e o respeito ao público LGBT. Como bons exemplos temos a Ben & Jerry’s, que posta ocasionalmente artigos informativos em seu site, e a Skol, que patrocinou a parada LGBT e reverteu parte de sua renda para ONGs. Porém o perigo está do outro lado, em empresas que aparentemente assimilam a pauta mas acabam reproduzindo conteúdos irresponsáveis, aumentando o preconceito e reforçando estereótipos. Neste caso, o que não falta é gente oportuna que espera este momento para vomitar o moralismo e ignorância em busca de audiência.

Nas últimas semanas, dois casos chamaram a atenção de forma negativa: a recente reportagem da revista Época sobre homossexuais que se consideram conservadores e a matéria da Folha de São Paulo chamando a atenção para o aumento de DSTs na capital paulistana. O primeiro caso sofre de um excesso de deslumbramento por parte da publicação. Tamanho destaque a quem acredita na volta da monarquia, ou mesmo gente que pouco faz questão de lutar por direitos LGBTs e usa a sigla como uma instituição para angariar seguidores. A outra é extremamente simplista ao tratar da nova onda de HIV nas grandes metrópoles, e como disse o jornalista Gustavo Bonfiglioli da Vice Brasil, reforça o retrato da juventude gay irresponsável e imoral.

A matéria “Gay de Direita”, publicada pela revista Época na última sexta-feira (15), contou com a participação de quatro homens gays que, apesar de suas diferenças partidárias, se declaram conservadores e em oposição às políticas de esquerda. Deixando de lado a questão econômica, acredito que o pior na matéria seja na verdade a falta de luta e de representatividade pelos direitos homossexuais em uma pauta como essa, publicada dentro do mês do Orgulho. Nenhum dos entrevistados sugeriu uma política para essa população, focando apenas em reproduzir ideias conservadoras já ditas anteriormente por homofóbicos. Impressionando pelo inusitado, a mídia se abriu mais uma vez à pessoas que reproduzem argumentos extremamente preconceituosos.

Febo, que ilustra a capa da revista, é um dos administradores do grupo “Gays de Direita” do Facebook

Como exemplo, gostaria de citar a falado vereador e líder do MBL, Fernando Holiday, que acabou viralizando nas redes sociais:

“O fato de eu namorar outro homem é um pecado. O fato de eu ter um desejo constante por outra pessoa do mesmo sexo, mas não fazer isso, não é um pecado. É a única saída em estar na Igreja Católica e ser homossexual.”

Agora me diga qual você acha que será o efeito de uma frase dessas para inúmeros adolescentes gays e lésbicas que cresceram em ambiente religioso? Temos aqui um gay não praticante que ganha aspas nessa revista de circulação nacional durante o mês da Diversidade. Se for observar com mais atenção, vai notar que essas figuras são construídas como alegorias, o fait-divers (jargão jornalístico para identificar casos excepcionais) em sua máxima. Elas representam tudo o que os conservadores adoram ver, gente desinformada que escolhe não lutar pelos seus direitos para ser aprovada por candidatos extremistas. Funcionam como uma oposição à parcela de gays politizados que escolhem usar sua voz para conquistar os direitos da comunidade LGBT, porque esses incomodam a opinião pública e têm grande influência nas eleições.

Um belo exemplo disso é a história do ativista Smith Hayes, que defende com unhas e dentes o candidato à presidente Jair Messias Bolsonaro, conhecido por suas declarações homofóbicas. Como apoiar o autor de absurdos como esses?

O ativista Smith Hayes posa ao lado de Bolsonaro, candidato conhecido por discursos preconceituosos

Entendo a importância de mostrar a pluralidade do movimento LGBT, que sempre é tido como uma pauta da esquerda, e mostrar o outro lado para o resto da sociedade. Porém faltou mostrar como esse apoio pode soar controverso (talvez valesse relembrar todas as falas homofóbicas de Bolsonaro e as políticas a qual ele se opõe), trazendo também fontes especialistas para explicarem o fenômeno. Os incríveis 386 membros do seleto grupo chamado “Gay de Direita” conseguiram uma matéria na capa de uma grande revista de circulação nacional. Acho extremamente tendencioso e perigoso esse tipo de reportagem e atenção a um grupo tão pequeno, e o pior, de forma tão irresponsável.

Os “gays de direita” não ligam para a representatividade na televisão, discordam de demonstrações de afetos em público, são contra o casamento homossexual e o direito à adoção de uma criança. O que está por trás desse “tiro no pé”? Quem eles querem agradar? Talvez fosse mais interessante buscar essas versões na história.

Será que faz sentido criar matérias tão negativas sobre os LGBTs em uma época na qual o debate está ficando cada vez mais rico. Num momento em que a Parada Gay fala diretamente sobre eleições, temos inúmeros artistas saindo do armário e usando suas redes sociais para lutar contra o preconceito, perdemos tempo dando espaço para quem decide “dar voz a seus algozes” (como disse Fabrício Longo). Mais do que respostas, gostaria mesmo de jogar perguntas: o que motiva um veículo grande a chamar pessoas que não se identificam com a luta do movimento LGBT para uma reportagem a ser publicada no mês do ORGULHO GAY?

Bem, não devemos esquecer a Revista Época foi a mesma que em abril publicou uma matéria problemática sobre o PrEp, a Profilaxia Pré-Exposição, um remédio que quando utilizado pode evitar a infecção de uma pessoa que não possui o vírus. Após a reportagem inúmeros médicos se manifestaram contra o veículo, afirmando que o texto se usa de preceitos morais para desqualificar um remédio que já foi adotado por outros países do mundo.

Em abril a revista Época também causou polêmica na internet ao divulgar uma matéria sobre o PrEp

Um dos entrevistados para a matéria, o médico Rico Vasconcelos foi às redes sociais se manifestar contra o que foi publicado:

“O texto da matéria não é nada melhor. Repleto de equívocos que reforçam estigmas sobre temas que já estão soterrados de preconceitos, como por exemplo o fato analisado com julgamento moral de que gays são promíscuos, ou que somente os gays precisam se preocupar com HIV.”

Ainda falando sobre DSTs e o estigma carregado pela comunidade LGBT, no início do mês a Folha de Sâo Paulo publicou uma matéria onde mostrava que 1 em cada 4 “homens que se relacionam com homens” possuem HIV. Apresentando os resultados alarmantes de uma pesquisa recente feita pelo Ministério da Saúde, o veículo divulgou gráficos mostrando o aumento de portadores do vírus HIV e a relação com a falta de proteção dos gays paulistanos.

Como bem pontuado pelo jornalista da Vice Brasil, Gustavo Bonfiglioli, tal informação nas mãos de pessoas desinformadas pode se tornar um incentivo ao preconceito. Ou seja, a grande questão da reportagem não são os dados divulgados, que pelo contrário, até ajudam a alertar os jovens em campanhas de prevenção.

“Toda vez que se fala de HIV/Aids no mainstream (quando se fala) é assim: culpa-se (e pune-se) quase que exclusivamente a própria vítima e suas práticas sexuais, e não a precariedade (inclusive no acesso à saúde) trazida a ela pela LGBTfobia da sociedade — que, aliás, ganha força com matérias como essa. Selecionei alguns replies fofos no Twitter do jornal, diretamente das sarjetas da Internet: “E ainda falam que a proibição de doar sangue é preconceito”, “é só parar de dar o cu”, “isso é resultado do sexo contrário à natureza”, entre outros bostejos (que aumentam a nossa vulnerabilidade)”, escreveu Bonfiglioli.

Um dos vários pecados cometidos pela matéria foi trazer os dados mas sem apresentar uma análise tão profunda da saúde pública, do preconceito e da coerção que essa parcela (de homens que se relacionam com homens) sofrem em relação às políticas públicas. A especialista Lígia Kerr, que coordenou a pesquisa, chega a citar por alto a falta de campanhas governamentais e reclama da censura da bancada religiosa, entretanto a mesma afirma que os jovens “não tem mais medo” da doença. Ou seja, medo e conhecimento aqui tem papeis semelhantes na prevenção de conter a segunda onda.

Tanto Bonfiglioli, como Gabriel Estrela, autor do canal “Boa Sorte”, afirmam que colocar o “medo” como um dos fatores que impedem o crescimento do vírus alimenta o estigma da doença. A questão aqui não é, nem nunca foi, ficar confrontando os dados e sim questionar e confrontar qual narrativa está veiculada a eles. A matéria, para além dos gráficos e das porcentagens, conta com falas selecionadas que ajudam a reforçar o preconceito.

Gabriel Estrela, ativista e youtuber, publicou recentemente um vídeo onde questionava a matéria da Folha

O outro especialista da matéria critica a atitude dos jovens, e afirma que atualmente eles se sentem “super-homens”, como se tudo funcionasse através de um sistema extremamente sexual. Fica implícito que o estereótipo de homossexuais extremamente sexualizados, Sodoma e Gomorra, que estão sendo punidos através do crescimento do vírus.

Através dos comentários deixados pelos leitores, é possível acompanhar o tipo de reação que tais reportagens catastróficas causam:

Comentários da reportagem postados no site da Folha de São Paulo

Acho muito importante que hoje em dia possamos debater como a nossa voz está sendo representada na mídia. São tempos difíceis, mas que finalmente temos liberdade para falar e lutar pelo nosso protagonismo nas narrativas. Não temos mais que agradecer aos céus se algum canal de televisão coloca um personagem LGBT, mesmo que seja muito problemático. Representatividade não é qualquer representação midiática.

Para encerrar, gostaria de deixar dois veículos de notícias LGBTs que admiro muito, tanto pelas pautas bem explicadas como pelo respeito por quem realmente luta pela nossa sobrevivência:

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