Parada Gay, “Pose” e o pertencimento à comunidade LGBT

fabrycio azevedo
fala bicha
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6 min readJun 5, 2018
Com o tema “Poder para LGBTI+ Nosso voto, nossa voz” a Parada reuniu 18 trios elétricos na Avenida Paulista, em São Paulo (foto: APOGLBT)

As sete cores do arco-íris tomaram a principal avenida da maior metrópole do país. São Paulo recebeu no último domingo (3) a 22ª edição da Parada de Orgulho LGBTI+¹, que levou cerca de 3 milhões de pessoas às ruas para celebrar a diversidade. No mesmo dia, a emissora FX lança sua série “Pose”, uma homenagem ao movimento de gays, lésbicas, transexuais nos guetos de Nova York durante o final dos anos 80 e início dos 90. Os dois acontecimentos fizeram com que eu refletisse sobre um sentimento muito importante, e que às vezes parece tão esquecido quando se fala na celebração dos direitos LGBTs, a percepção dessas minorias como uma comunidade. Sei que parece muito otimista, diante do cenário atual, porém repensar a sensação de união e pertencimento pode nos ajudar a entender da onde viemos e para onde vamos.

Antes de tudo quero ressaltar que o sentimento de comunidade não deve ser tratado como sinônimo de uniformidade, e sim de uma pluralidade, de pessoas unidas pelas suas diferenças. Dentro da própria sigla LGBTI+ existem variações de privilégios, dependendo de raça, cor, gênero, e passabilidade numa sociedade heteronormativa².

O tema da Parada Gay este ano foi relacionado às eleições e, como todo ano, o evento por si só causa uma grande polêmica. Criticado tanto pelos heterossexuais, como por uma parcela da comunidade gay, o evento é visto como um “Carnaval fora de época”, relacionando uma festa que prioriza os corpos nus, drogas e o sexo livre, tudo através de uma leitura pejorativa. Para a parcela LGBT que critica, o argumento usado é de que a Parada ajuda a “manchar a imagem dos outros gays, lésbicas e transexuais” que não concordam com o movimento (reproduzindo argumentos homofóbicos para defender seu ponto de vista). Basta olhar os comentários dos principais portais de notícias do país para endossar esse estereótipo baseado na falta de informação.

Comentários de uma publicação sobre a Parada LGBTI+ postada no Facebook da GloboNews

Este pensamento de senso comum deve ser questionado e combatido principalmente quando pensamos na origem da data. As festas e performances sempre foram uma maneira de protestar. A própria data de Orgulho LGBTI, criada em 28 de junho, foi feita para homenagear o levante de Stonewall, uma série de rebeliões contra a homofobia e a transfobia, que aconteceu em 1969. O movimento serviu para combater as batidas policiais frequentes e o tratamento desumano dado aos frequentadores do local, que eram em sua maioria LGBTs.

Porém para além do significado, já que esse pode ser encontrado facilmente na internet, é preciso viver este momento. Pela primeira vez estive na Parada LGBT de São Paulo e posso afirmar que “orgulho” é um eufemismo para o sentimento vivido. Estar reunido com pessoas, que de alguma forma são minoria da sociedade, que sofrem preconceito pela sua orientação sexual ou gênero, foi inspirador. Ver tantas pessoas que lutam diariamente pela sobrevivência, algumas que já saíram do armário, outras que ainda precisam esconder sua sexualidade, umas que vivem seu momento de glória com a família e outras de tormenta. Em meio àqueles três milhões eram inúmeras histórias, que tinham em comum a celebração de ser gay, lésbica, trans, bissexual, ou qualquer outra forma de amar/viver que vai contra a heteronormatividade. Era como uma grande roda de amigos, com os olhares cúmplices e respeito mútuo.

Tinha bebida? Tinha. Tinha música? Tinha! Mas também tinha o amor, livre em todas as formas de expressão.

Um dos momentos mais significativos para mim foi ver a emoção do público no show da Pabllo Vittar, Gloria Groove, Aretuza e Lia Clark. Todas as quatro são drag queens que, atualmente, gozam de fama, prestígio e reconhecimento. Não que o show da Anitta ou a Gretchen não tenham sido significativos, mas ter alguém com a popularidade e a representatividade da Pabllo arrastar uma multidão para a Avenida Paulista é algo que precisa ser destacado. A presença dela tomou o espaço e todos cantavam KO (o maior hit da artista) em uníssono. Ter uma atração principal da parada LGBT que é cantora, drag queen e afeminada é uma celebração à diversidade. Acredito que até mesmo os que não tem costume de escutar as canções de Pabllo se emocionaram quando a cantora subiu no trio elétrico.

A cantora Pabllo Vittar durante sua performance na 22ª Parada do Orgulho LGBTI+ de São Paulo (crédito: Eduardo Martins/AGNews)

Sei que existe muita crítica em relação à qualidade vocal dela como cantora ou de suas composições, mas é preciso admitir que ela, como cantora drag queen, teve mais alcance e questionou o preconceito do que boa parte de uma bolha acadêmica e intelectual. O sucesso de Pabllo é uma vitória para todos os LGBTs e, tomando o sentimento de união e comunidade, como se fosse a realização do sonho de um familiar.

A série “Pose” estreiou no último domingo (3) e mostra a importância cultural da comunidade LGBT de Nova York (Divulgação)

Além da Parada LGBTI, o último domingo também foi dia de estreia da nova série de Ryan Murphy, “Pose”. A série é ambientada no ano de 1986, e narra a cultura dos balls (bailes), eventos que aconteciam principalmente nos guetos de Nova York e se tornaram uma verdadeira disputa de looks, dança e resistência ao preconceito. Além das festas, a obra mostra a relação única entre as chamadas “mães”, drag queens ou transexuais mais velhas, e seus respectivos “filhos”. Logo no primeiro episódio vemos a briga de Blanca (Mj Rodrigues), que decide romper com a sua “mãe” e criar a sua própria família para os Balls. Durante esse percurso ela encontra com Damon (Ryan Jamaal Swain), um adolescente que foi expulso recentemente de casa por se assumir homossexual. Angel então assume a figura maternal com o rapaz e passa a guiá-lo para que realize os seus sonhos e seja livre para expressar seus desejos.

A época dos Balls era tomada por figuras maternas que tinham uma relação de família com seus pupilos. (Divulgação)

Trazendo para os dias atuais temos instituições criadas com o propósito de abraçar a população LGBT desabrigada, como a Casa Nem, voltada para transexuais no Rio de Janeiro e a Casa 1, em São Paulo.

É então, olhando um pouco mais de perto tanto para a série como para a Parada, que enxergo esse sentimento tão fraternal vindo da comunidade LGBT, e por isso, chamo-a de COMUNIDADE. Pode parecer que ignoro todos os problemas estruturais que existem dentro do próprio movimento, e até as desigualdades, mas na verdade é uma das muitas maneiras de celebrar o orgulho.

O futuro ainda é incerto. Estamos em ano de eleição e aparecerão muitos candidatos interessados na nossa parcela de votos. E aí que podemos nos inspirar no passado e no presente do que é ser LGBT e pensar num bem comum para todos que incluem esta “minoria”. Por isso o sentimento de pertencimento é tão importante. Porque ele nos afeta, porque gera questionamentos e ao mesmo tempo a fraternidade. E assim como uma família o movimento LGBT não está livre de equívocos, não é perfeito e precisa estar sempre em constante mutação para que abrace toda a variedade e diversidade de pessoas. Gostaria de encerrar com uma frase da Rupaul que representa um pouquinho tudo o que falei: “Nós, como gays podemos escolher nossa família”.

¹ LGBTI+ é a sigla usada para a Parada. Ela representa o grupo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Intersexo e outros gêneros.

² Heteronormatividade é um termo usado para descrever situações em que outras formas de sexualidade/gênero além do heterossexual é visto como inferior e/ou marginalizada pela sociedade.

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