Economia e política do cinema alagoano

Golbery Lessa
Alma Pulcra
Published in
4 min readNov 28, 2019

por Golbery Lessa

O impacto dos produtos audiovisuais no imaginário contemporâneo é intenso, mas suas condições de produção estão ligadas ao complexo das insensíveis relações econômicas. O cinema pressupõe meios técnicos próprios e força de trabalho especializada capaz de conceber, produzir, divulgar, avaliar, distribuir e exibir filmes, bem como implica na remuneração desses profissionais pelos consumidores, sejam indivíduos, ONGs, empresas ou governos. São também necessárias instituições de ensino e capacitação para o setor e políticas de fomento e formação de público, que possibilitem coordenar a demanda e a oferta dos produtos.

Em algumas conjunturas históricas, falhas de mercado significativas e atitudes políticas hostis podem inviabilizar o cinema em dada formação social e, frequentemente, são obstáculos enfrentados pela heroica resistência de profissionais do setor e segmentos mais críticos dos consumidores. Analisar os problemas e possibilidades de qualquer audiovisual particular passa por refletir sobre as condições econômicas e políticas de sua existência e compreender as ferrenhas lutas em torno delas, pois o cinema é um elemento decisivo da guerra por hegemonia e direção política.

O cinema alagoano é determinado por sua inserção na sociedade de mercado e sua imersão nas dimensões civilizacionais modernas e pré-modernas. É realizado em uma dada regionalidade com capitalismo e cultura portadores de singularidades. Esses fatos impõem condições econômicas específicas (por exemplo: número menor de investimentos privados no audiovisual) determinadas por um capitalismo particularmente atrasado e dependente, lastreado na especialização produtiva, no desenvolvimento industrial restrito, em um setor de serviços de baixa produtividade, na exportação de commodities, na importação da maioria dos bens industrializados e na asfixia do mercado interno. Essas marcantes características permitiram substanciais sobrevivências e ressurgências de dimensões pré-modernas, para o bem (folclore) e para o mal (coronelismo). O audiovisual alagoano é produto de uma situação que sintetiza valores e instituições da modernidade e dimensões pré-modernas nos costumes, nas artes plásticas, na música, na culinária e todas as outras áreas do imaginário. Condição que difere apenas em grau, é claro, daquelas de outros estados nordestinos e mesmo do país.

Produzir, distribuir e exibir filmes de maneira profissional a partir de Alagoas implica em enfrentar as dificuldades de qualquer iniciativa econômica em setores não dominantes da economia estadual, isto é, significa padecer das consequências do fenômeno conhecido como “doença holandesa”, ou seja, situação na qual os recursos se concentram nos produtos de exportação, inibindo os outros setores. Implica em não encontrar financiamento público ou privado relevante, em enfrentar dificuldades de acessar infraestrutura suficiente, suporte tecnológico e mão de obra em número e qualidade suficientes, e enfrentar graves dificuldades de comercialização em um mercado interno restrito, eivado de preconceitos relativos ao produto local.

Como ocorre em qualquer outro caso particular, por influir necessariamente no imaginário coletivo e, portanto, afetar de modo direto a luta por hegemonia ideológica e direção política, o cinema alagoano, além dos problemas econômicos aludidos, precisa enfrentar, conviver ou aceitar, de modo aberto ou velado, o projeto político do status quo local marcado pela presença de atores econômicos que sintetizam modernidade e arcaísmo (como os setores canavieiro, turístico e imobiliário) e de sujeitos políticos de conformação oligárquica (famílias especializadas na captura dos poderes públicos). Mesmo nessas circunstâncias adversas, reproduzindo fenômeno ocorrido em outros estados no mesmo período, nas duas primeiras décadas do século XXI surgiu em segmentos da sociedade civil um criativo e vitorioso movimento de reconstrução do audiovisual. Por meio de marcadas afirmações (Mostra Sururu de Cinema Alagoano, Movimento Quebre o Balcão) e silêncios táticos (críticas metafóricas ao status quo), de rupturas e continuidades institucionais e estéticas, da aposta na pluralidade de gêneros e abordagens, da efetivação de erros e acertos organizacionais, de graus diversos de politização e despolitização, o cinema alagoano foi reconstruído e nos anos recentes conseguiu garantir junto aos governos municipal, estadual e federal um aporte de recursos de fomento compatível com o grau alcançado de qualidade técnica e artística. Entretanto, felizmente, sua força continua a se originar na auto-organização e não no reconhecimento ou apoio das instâncias estatais.

Como a economia contemporânea tende para produtos nos quais a dimensão simbólica é cada vez mais decisiva, pressupondo uma incontornável imbricação entre indústria, ciência e serviços, o avanço do audiovisual alagoano o transforma em um caso emblemático das possibilidades de mudança estrutural da econômia de Alagoas no sentido de aproximá-la das tendências de ponta da economia mundial. A maneira autônoma como se desenvolveu, a criatividade e capacidade de realização dos segmentos sociais mobilizados, a abertura para a democratização contínua do conhecimento e a criação de redes com outros setores, como o de games, da música e do design, colocam-no como um eixo incontornável de uma economia criativa, simbólica, baseada no conhecimento e na inovação, capaz de imbricar ciência (universidades e institutos de pesquisa), softwares, arquitetura, urbanismo, agricultura familiar orgânica, produção de energia limpa, educação, turismo cultural, artes visuais, música e espetáculos. Também nas Alagoas de Graciliano, a ironia da história fez com que aqueles que frequentemente foram taxados de aluados por atuarem profissionalmente na confecção das mediações técnicas e artísticas para os sonhos coletivos passassem a ser a vanguarda da produção econômica na contemporaneidade.

Portanto, o cinema alagoano de hoje é político pelo simples fato de existir, pois se afirmou contra todas as tendências reacionárias da formação social na qual é produzido e traz em si o germe de uma nova economia e de uma nova maneira de construir as políticas públicas. Mesmo se, por um fenômeno inexplicável, dada a complexidade objetiva e subjetiva da sociedade, seu conteúdo e sua forma se tornassem apenas escapistas, totalmente focadas na já idosa atitude “da arte pela arte”, o presente audiovisual alagoano seria em si uma revolução política e um salto civilizatório.

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