IX Bienal Internacional do livro de Alagoas e a alagoanidade

Golbery Lessa
Alma Pulcra
Published in
5 min readNov 9, 2019

por Golbery Lessa

Valéria Correia, reitora da Universidade Federal de Alagoas

A nona edição da Bienal Internacional do Livro de Alagoas, planejada para o período de 01 a 10/11/2019 e realizada pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), com auxílio de outros órgãos públicos e entidade da sociedade civil, está ocorrendo nos prédios e ruas do histórico bairro de Jaraguá, zona portuária e boêmia de Maceió. Esse levar livros às ruas e alocá-los junto a marcos da memória coletiva não é trivial e nem ocorre por acaso. É uma expressão do progresso intelectual ocorrido nos últimos anos na opinião pública referente à valorização da história e da cultura locais. Pode parecer pouco e mesmo apenas poético, no entanto, tem sido um passo decisivo no enfrentamento dos gravíssimos dilemas experimentados pela formação social alagoana nas últimas décadas.

Nenhuma formação social é capaz de equacionar os impasses de seu desenvolvimento sem produzir um grau significativo de autoconsciência, de compreensão sobre si mesma, expresso na filosofia, na religião, na ciência e nas artes. Mesmo em uma sociedade dividida em classes, etnias e gêneros, a percepção e a aceitação de unidades mais amplas relacionadas à geografia e à cultura são imprescindíveis para a melhor compreensão da vida coletiva e para o encaminhamento mais civilizado (o que não significa, necessariamente, pacífico) das lutas sociais. O reconhecimento da existência de uma dada cultura local/regional/nacional capaz de relacionar vários grupos sociais e identidades étnicas e de gênero antípodas não é, necessariamente, igual ao encobrimento ideológico do caráter antagônico dos seus interesses econômicos, simbólicos e políticos. Consiste na constatação empírica da existência de dimensões culturais comuns a grupos antagônicos. Mesmo nas mais sangrentas lutas, os grupos antagônicas podem possuir o mesmo sotaque linguísticos e variações da mesma religião.

Ao contrário do imaginado por alguns setores da esquerda, as classes dominantes podem disputar hegemonia e direção política não apenas afirmando uma identidade local/regional/nacional fundada em ideias conservadoras, mas também, em alguns casos, negando a existência de qualquer identidade local/regional/nacional.

No primeiro caso, afirmam a unidade ao mesmo tempo em que disputam o seu conteúdo (exemplos: institutos históricos e academias estaduais de letras). No segundo, desprezam ou negam, de modo mais consciente ou menos consciente, a identidade local/regional/nacional objetivando o aniquilamento de todos os referenciais e o fim da capacidade de compreensão dos dilemas econômicos, culturais e políticos existentes. Pressupõe a destruição deliberada das políticas culturais. Essa via é trilhada quando o projeto econômico, cultural e político das classes dominantes é de tal forma excludente que se torna indefensável no campo do pensamento social e da produção de cultura. Como não tem condições de vencer o debate e estabelecer sua hegemonia pelos argumentos científicos e a qualidade da criação artística, essas classes procuram destruir ou restringir ao máximo, por ação ou omissão, a esfera cultural. É o caso alagoano após a ascensão do setor canavieiro ao cume do poder econômico, simbólico e político estadual ocorrida a partir do anos 1960. Basta observar o declínio do apoio da burguesia agroindustrial ao Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) e seu desprezo às artes e às ciências humanas.

Essa alienação da realidade, radicalizada nos anos 1990, foi sendo identificada por vários indivíduos, coletivos e instituições governamentais e não governamentais, a partir de diferentes perspectivas ideológicas. O movimento foi iniciado por historiadores e cientistas sociais como Dirceu Lindoso, Sávio de Almeida, Douglas Apratto, Cícero Péricles e Edson Bezerra, para citar os mais influentes. E também instituições, como os cursos de história da UFAL, da UNEAL e do CESMAC. No campo artístico, a Associação Teatral das Alagoas (ATA), liderada pelos incansáveis Ronaldo de Andrade e Homero Cavalcante, continuou sua pesquisa sobre estética e lugares de memórias locais, principalmente a partir do Bloco Filhinhos da Mamãe e de espetáculos teatrais. No audiovisual, surgiu um vigoroso movimento de reconstrução do cinema centrado na tematização da realidade alagoana. No ballet, a bailarina e produtora Maria Emília Clark trouxe um padrão internacional de qualidade à pesquisa de temas e personagens regionais. Algo análogo ocorreu na música com o trabalho do maestro Almir Medeiros e as experiências de várias bandas contemporâneas, como a Xique e Baratinho, energizada por Railton Sarmento. Entre vários outros exemplos.

A burguesia continuou se negando a investir no fortalecimento da autoconsciência local (o IHGAL continua desprezado pelo setor canavieiro, do qual recebe apenas, a título de “patrocínio”, o equivalente a um salário mínimo por mês), basta ver a inexistência de investimentos das usinas de açúcar em projetos da Lei Rouanet e o magro orçamento para a Secretaria de Cultura nos governos de plantão que as representam. Em outra situação econômica, simbólica e política, a Brasken (unidade da Odebrecht cuja atividade destruiu o subsolo de quatro bairros de Maceió) e a Algás (empresa de economia mista na qual o governo do estado tem apenas 51% do capital) se obrigam a investir em cultura local para compensarem a aparência negativa sempre impregnada na atividade de extração mineral.

No entanto, diante das citadas iniciativas da opinião pública, encabeçadas por intelectuais majoritariamente de esquerda ou, pelo menos, contrários ao status quo, os governos oligárquicos passaram a disputar e tentar absorver o citado movimento intelectual/artístico/político e os significados da alagonidade. A próprias palavra “alagonaidade”, mesmo rejeitada pelo Aurélio e o dicionário do Word, tornou-se uma espécie de batata quente simbólica também para as classes dominantes. Isso ficou claro na tentativa de absorção governamental da festa do Xangô Rezado Alto, iniciada no governo Teotônio Vilela Filho, e se torna gritante nas iniciativas estatais de comemoração dos 200 anos de Alagoas. Tem dado margem a uma complexa e culturalmente fértil gramsciana guerra de posições entre as várias vertentes da esquerda, do centro e da direita no interior de diversos órgãos, projetos e iniciativas não governamentais. A editora da Imprensa Oficial Graciliano Ramos tem sido um dos palcos mais produtivos dessas afirmações e disputas de significados em torno da alagoanidade, do que deriva o intenso e qualificado fluxo de edições de alta qualidade relativas à realidade local e à literatura alagoana.

Como maior evento cultural do estado, a IX Bienal Internacional de Alagoas, como já ocorria em suas edições anteriores, expressa principalmente a efervescente busca de compreensão da realidade alagoana e as disputas em torno dos significados da identidade estadual. Projeta as lutas de classe, etnia e gênero em uma dimensão mais sofisticada e generosa, pois capaz de contribuir para o efetivo entendimento de quais seriam as reais diferenças e identidades entre as ideologias e interesses dos grupos sociais, possibilitando uma melhor racionalização das disputas econômicas, simbólicas e políticas, mesmo que isso não possa harmonizá-las, superá-las ou torná-las necessariamente pacíficas.

--

--