O Ódio ao Índio

Golbery Lessa
Alma Pulcra
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7 min readNov 17, 2019

por Álvaro Garcia Línera

Álvaro García Linera, vice-presidente no governo de Evo Morales.Foto La Jornada

Como uma espessa neblina noturna, o ódio se espalha pelos bairros das tradicionais classes médias urbanas da Bolívia. Seus olhos transbordam de raiva. Eles não gritam, cospem; eles não reivindicam, eles impõem. Suas canções não são de esperança ou fraternidade, são de desprezo e discriminação contra os índios. Eles sobem em suas motos, enchem caminhões, se reúnem em suas fraternidades carnavalescas e de universidades particulares e caçam índios altivos que ousaram tirar seu poder.

No caso de Santa Cruz, eles organizam hordas motorizadas com paus na mão para assustar os índios que vivem em favelas e mercados. Eles cantam slogans dizendo que você tem que “matar collas”, e se alguma mulher de roupa indígenas os encontram na estrada, eles a espancam, ameaçam e pedem que ela deixe seu território. Em Cochabamba, organizam comboios para impor a supremacia racial na zona sul, onde vivem as classes carentes, e se laçam como se fossem um destacamento de cavalaria contra milhares de camponesas indefesas que marchavam pela paz. Eles carregam tacos de beisebol, correntes, granadas de gás, algumas exibem armas de fogo. A mulher é sua vítima favorita, eles agarram uma prefeita de uma população campesina, humilham-na, arrastam-na pela rua, batem nela, urinam sob seu corpo quando ela cai no chão, cortam seus cabelos, ameaçam linchá-la e quando percebem que estão sendo filmados decidem jogar tinta vermelha, simbolizando o que farão com o sangue.

Em La Paz, eles suspeitam de suas empregadas domésticas e não lhes dirigem a palavra quando trazem a comida para a mesa, no fundo as temem, mas também as desprezam. Depois saem às ruas para gritar, insultam Evo e nele todos esses índios que ousaram construir a democracia intercultural com igualdade. Quando são muitos, arrastam a Wiphala, a bandeira indígena, cospem, pisam, cortam, queimam. É uma raiva visceral que é lançada neste símbolo dos índios como se quisessem extinguir a terra e junto com a mesma todos os que nela se reconhecem.

O ódio racial é a linguagem política dessa classe média tradicional. Seus graus acadêmicos, viagens e fé são inúteis; porque no final tudo se dilui diante do pertencimento a dada estirpe. No fundo, a estirpe imaginada é mais decisiva e coerente com a linguagem do ódio baseado na cor da pele, seus gestos viscerais e a sua moral corrompida.

Tudo explodiu no domingo, dia 20, quando Evo Morales venceu as eleições com mais de 10 pontos de diferença do segundo colocado, mas não mais com a imensa vantagem de antes ou 51% dos votos. Foi o sinal de que as forças regressivas aguardavam, desde o timorato candidato da oposição liberal até as forças políticas ultraconservadoras, a OEA e a inefável classe média tradicional. Evo venceu novamente, mas não tinha mais 60% do eleitorado, ficou mais fraco, e os adversário aproveitaram para tentar passar por cima dele. O perdedor não reconheceu sua derrota. A OEA falou de eleições limpas, mas de uma vitória reduzida e pediu um segundo turno, aconselhando a ir contra a constituição que afirma que se um candidato tiver mais de 40% dos votos e mais de 10 pontos de diferença em relação ao segundo é o candidato eleito.

E a classe média foi à caça dos índios. Na noite da segunda-feira, 21, cinco dos nove órgãos eleitorais foram queimados, incluindo boletins de voto. A cidade de Santa Cruz decretou uma greve cívica que articulou os habitantes das áreas centrais da cidade, ramificando a greve nas áreas residenciais de La Paz e Cochabamba. E então o terror eclodiu.

Bandos paramilitares começaram a sitiar instituições, a queimar sedes sindicais, a queimar as casas de candidatos e líderes políticos do partido do governo, até que a residência particular do presidente fosse saqueada. Em outros lugares, famílias, incluindo crianças, foram sequestradas e ameaçadas de serem flageladas e queimadas se o pai ministro ou o líder sindical não renunciasse à sua posição. Uma longa noite de facas longas foi desencadeada e o fascismo se tornou iminente.

Quando as forças populares mobilizadas para resistir a esse golpe civil começaram a recuperar o controle territorial das cidades com a presença de trabalhadores, mineiros, camponeses, indígenas e colonos urbanos, e o equilíbrio da correlação de forças estava se inclinando para o lado das forças popular, veio o motim da polícia.

Os policiais haviam demonstrado durante semanas uma indolência e inaptidão para proteger as pessoas humildes quando elas eram espancadas e perseguidas por gangues fascistóides; mas, a partir de sexta-feira, sem o conhecimento do comando civil, muitos deles mostrariam uma capacidade extraordinária de atacar, parar, torturar e matar manifestantes populares. Antes, quando foi necessário conter os filhos da classe média, a política alegou que não tinha capacidade técnica de fazê-lo, mas, agora, que era para reprimir os índios revoltados, a arrogância e a vingança repressiva da polícia eram monumentais.

O mesmo aconteceu com as forças armadas. Em toda a nossa administração, nunca permitimos que as manifestações civis fossem reprimidas, mesmo durante o primeiro golpe civil de 2008. Agora, em plena convulsão e sem que ninguém perguntasse nada, eles disseram que não tinham condições materiais de conter os distúrbios, que tinham apenas 8 balas por militar e que, para estar presente na rua de maneira dissuasiva, era necessário um decreto presidencial. No entanto, não hesitaram em pedir ao Presidente Evo que se demitisse, quebrando a ordem constitucional. Eles tentaram sequestrar Evo quando este se dirigiu a Chapare; e quando o golpe foi consumado, eles foram às ruas para disparar milhares de balas, militarizar as cidades, matar camponeses. Tudo sem decreto presidencial. Obviamente, para proteger o índio, era necessário um decreto. Para reprimir e matar índios, bastava obedecer ao que o ódio racial e de classe ordenava. Em cinco dias já existem mais de 18 mortos e 120 feridos a tiros; claro, todos eles indígenas.

A questão que todos temos que responder é: como é que essa classe média tradicional foi capaz de incubar tanto ódio e ressentimento contra o povo ao ponto de abraçar um fascismo racializado centrado no índio como inimigo? Como fez para irradiar suas frustrações de classe para a polícia e Forças Armadas e se transformou na base social dessa fascistização, dessa regressão estatal e degeneração moral? Foi a rejeição da igualdade, isto é, a rejeição dos próprios fundamentos de uma democracia substancial.

Nos últimos 14 anos de governo, os movimentos sociais tiveram como principal característica o processo de equalização social, redução abrupta da pobreza extrema (de 38 para 15%), extensão de direitos para todos (acesso universal à saúde, educação e proteção social), indianização do Estado (mais de 50% dos funcionários da administração pública têm uma identidade indígena, nova narrativa nacional em torno do tronco indígena), redução das desigualdades econômicas (de 130 para 45, a diferença de renda entre os mais ricos e os mais pobres), isto é, a democratização sistemática da riqueza, acesso a bens públicos, oportunidades e poder estatal.

O PIB cresceu de 9 bilhões de dólares para 42 bilhões, a economia interna e de mercado se expandiu, o que permitiu que muitas pessoas adquirissem casa própria e melhorassem sua atividade profissional. Mas isso levou ao fato de que em uma década a porcentagem de pessoas na chamada “classe média medida em renda” aumentasse de 35% para 60%, principalmente dos setores indígenas populares. É um processo de democratização dos bens sociais através da construção da igualdade material, mas que inevitavelmente levou a uma rápida desvalorização dos capitais econômicos, educacionais e políticos pertencentes às classes médias tradicionais. Se antes um sobrenome notável ou o monopólio do conhecimento legítimo ou o conjunto de vínculos parentais típicos da classe média tradicional lhes permitia acessar posições na administração pública, obter créditos, licitar obras ou bolsas de estudos, hoje o número de pessoas que lutam para a mesma posição ou oportunidade mais que dobrou, reduzindo as chances de acessar esses bens; mas também os “arrivistas”, a nova classe média de origem popular indígena, tem um conjunto de novas capitais (língua indígena, vínculos sindicais) de maior valor e reconhecimento estatal para lutar pelos bens públicos disponíveis.

É, portanto, um colapso do que era característico da sociedade colonial, a etnia como capital, ou seja, o fundamento imaginado da superioridade histórica da classe média sobre as classes subalternas, porque aqui na Bolívia a classe social é apenas compreensível e visível sob a forma de hierarquias raciais. O fato de os filhos desta classe média terem sido a força de choque da insurgência reacionária expressa o grito violento de uma nova geração que vê como a herança do sobrenome e da pele desaparece diante da força da democratização dos bens. Embora exibam a bandeira da democracia entendida como o voto, na verdade se rebelaram contra a democracia entendida como equalização e distribuição da riqueza. É por isso que surge o transbordar de ódio, a explosão da violência, porque a supremacia racial é algo que não é racionalizado. É vivido como um impulso primário do corpo, como uma tatuagem da história colonial na pele. Portanto, o fascismo não é apenas a expressão de uma revolução fracassada, mas, paradoxalmente, também nas sociedades pós-coloniais, reação ao sucesso de uma democratização material alcançada.

Portanto, não surpreende que, enquanto os índios colecionam os corpos de cerca de vinte mortos a tiros, seus autores materiais e morais narrem que o fizeram para salvaguardar a democracia. Mas, na realidade, eles sabem que o fizeram para proteger o privilégio da casta e do sobrenome.

Mas o ódio racial só pode destruir; não é um horizonte, nada mais é do que uma vingança primitiva de uma classe histórica e moralmente decadente que demonstra que por trás de cada liberal medíocre existe um golpista consumado.

*Vice-presidente da Bolívia no exílio

Fonte:https://www.jornada.com.mx/2019/11/17/opinion/026a1mun?fbclid=IwAR3iwy-43JCDR56Xwj-n99oOMii_uQ5vlutUXFhdPClxgd_SVjY8SMFyjqU#.XdFqtwQwtyA.facebook

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