Significado histórico de Jaraguá

Golbery Lessa
Alma Pulcra
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4 min readNov 24, 2019

por Golbery Lessa

Bairro de Jaraguá, Maceió -AL

Durante a IX Bienal Internacional de Alagoas, milhares de pessoas expressaram encantamento pelo bairro de Jaraguá, área portuária da capital alagoana. A sua valorização tornou-se tão natural que a maioria não se pergunta como essa atitude mental foi construída ao longo do tempo. Para compreender melhor a relação dos alagoanos com o bairro, seria fértil refletirmos sobre significado histórico de Jaraguá.

Maceió surgiu no final do século XVIII, a partir de três núcleos contíguos: a beira da lagoa Mundaú, o Centro e a enseada de Jaraguá. O complexo lacustre funcionava como fonte de proteínas e facilitava, por possibilitar o transporte, a chegada das mercadorias interioranas ao litoral. Em suas margens se concentrou a maior parte dos trabalhadores. No núcleo central, se estabeleceram a morada dos ricos, nacionais e portugueses, e os marcos do poder político e ideológico. Em Jaraguá, foi erguido o complexo comercial e portuário necessário à exportação de produtos tropicais e à importação de manufaturados.

Após dois terços do século XVIII serem marcados pela estagnação dos engenhos e a ampliação da atividades de subsistência (pesca, coleta, artesanato, agricultura e pecuária), a demanda da Revolução Industrial por açúcar e algodão geraria o revigoramento da produção capitalista na área que viria a ser a província das Alagoas. A enseada de Jaraguá permitia a ancoragem simultânea de vários navios. O cais do porto somente seria construído nos anos 1940, mas as águas tranquilas e o regime de ventos favorável permitiam a ancoragem segura e o desembarque via barcaças. A atividade algodoeira se espalharia pelo semiárido e os engenhos voltariam a se multiplicar celeremente no litoral.

A grande burguesia comercial exportadora/importadora será revigorada por essas modificações e, em consórcio com capitais internacionais, subordinará econômica, ideológica e politicamente os senhores de engenho e os produtores de algodão. Não se tratava de uma aliança, mas de efetiva subordinação dos responsáveis pela produção aos encarregados da comercialização e do financiamento. Os latifundiários do açúcar e os produtores de algodão não tinham dinamismo tecnológico, redes e capitais suficientes para se tornarem independentes dos grandes comerciantes.

Jaraguá será a materialização emblemática de um dos polos urbanos mais dinâmico da província no novo momento da economia capitalista e, também, porta de entrada de uma nova fase da complexa relação entre a modernidade e a pré-modernidade. Em dimensões decisivas dos processos econômicos, culturais e políticos, o século XIX de Maceió, como ocorreu em outras capitais brasileiras, será centrado na zona portuária e comercial.

Sede de consulados, embaixadas, bancos estrangeiros, nacionais e locais, seguradoras, associações empresariais e proletárias, grandes empresas de exportação/importação de várias nacionalidades, lojas de mercadorias estrangeiras, cabarés, restaurantes, cafés e dezenas de outras instituições, o bairro exalará, além dos odores indefectíveis de açúcar e de algodão, cosmopolitismo, sofisticação e complexidade cultural. E também radicais, frequentemente sangrentos, conflitos étnicos e de classe, próprios da sociedade capitalista, pois conviviam no mesmo espaço a burguesia comercial, o braço armado do Estado e milhares de trabalhadores.

Na virada dos século XIX para o século XX, novas mudanças econômicas e geopolíticas, principalmente a exportação de capital e tecnologia dos países centrais aos países periféricos, provocam a decadência do bairro, mudando sua função na cidade. Os capitais acumulados na exportação/importação fundam usinas de açúcar e fábricas têxteis, estabelecendo a indústria como o novo dínamo do capitalismo e provocando o declínio dos engenhos e das grandes firmas comerciais. A burguesia comercial se metamorfoseará em burguesia agroindustrial (a família Leão, por exemplo, fundará a Usina Leão) e burguesia têxtil (a família Teixeira Bastos, por exemplo, fundará as fábricas de Rio Largo), deslocando a vanguarda econômica e política do proletariado para as plantas fabris.

Mais capitalizadas e tecnicamente dinâmicas, usinas e fábricas têxteis dispensarão os grandes comerciantes como financiadores e intermediários. A burguesia agroindustrial (usinas) e industrial (fábricas têxteis) conquistará o predomínio econômico e a hegemonia ideológica no interior da classe dominante. Em 1933, para evitar a superprodução de açúcar e mediar os conflitos entre usineiros nordestinos e paulistas, Getúlio Vargas decreta o monopólio estatal da comercialização do produto, o que tirará das grandes firmas até a comercialização do açúcar dos engenhos.

A partir dos anos 1940, os processos socioeconômicos e culturais de Jaraguá mudarão radicalmente. O bairro virará apêndice anacrônico da atividade portuária. O imaginário e o equipamentos urbanos passam a ter seus elementos ressignificados, abandonados ou utilizados para outras funções. Os ricos e a classe médias se mudam, as construções se deterioram e os aluguéis despencam, mas a maioria dos prédios permanecerá nas mãos da elite. O cosmopolitismo e a sofisticação serão deslocados pela boemia e a prostituição. A lembrança do passado de pujança se transformará em nostalgia e na intuição de que o bairro carrega em si uma profunda verdade. Essas percepções passarão por várias fases e serão objeto de diversos debates até o hoje, principalmente nos momentos nos quais as reflexões sobre identidade local e rumos da sociedade se impõem. A valorização de Jaraguá, portanto, decorre da intuição inscrita no labirinto da memória social de que o seu significado histórico se confunde com o sentido da formação social alagoana.

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