Comer, Trabalhar, Rezar, Morrer, Amar.

Lições sobre carreira, identidade e fome de se transformar de quatro décadas de vida.

Melissa Setubal
consciência criativa
6 min readMay 20, 2019

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ah, meus 30 anos na Toscana, vivendo a vida boa de não saber o que fazer da vida… Sabia de nada, inocente…

Se tem uma coisa que posso dizer é que comi de quase tudo nesse buffet sortido que é a vida. Já tive tantos estilos de vida e modelos de identidade, que costumo dizer que já estou na minha quinta ou sexta versão só nessa existência. O que conheço sobre a minha identidade vem sendo alimentada justamente por todas essas experiências.

Com dez anos de idade, eu saí de casa para estudar na “cidade grande”, como uma espécie de prêmio por meu “brilhantismo acadêmico” e bom comportamento. Logo depois de chegar aos vinte, meu pai faleceu e fui catapultada para o ambiente de trabalho, onde continuei a ser premiada por minha produtividade. Ou seja, eu era especialmente boa em seguir o script da menina inteligente, bem educada, e que se destaca pelas “razões certas”, mas não demais a ponto de causar qualquer desconforto no status quo.

Prestes a fazer trinta anos, eu tinha deixado morrer minha carreira bem sucedida no mundo corporativo, meu bom salário estável, meu status, minha casa, minha família e amigues, minha cidade, e tudo que eu conhecia como certo (e reconhecido por todo mundo à minha volta como certo) para me jogar no abismo do desconhecido. O que começou como ano sabático, na verdade, era um despertar de uma alma reprimida pelos padrões vigentes.

Então, resolvi explorar um bando de coisas que bem distintas da tal “zona de conforto”. Me joguei em uma nova carreira no empreendedorismo de propósito, de renda instável, cujo status dependia da quantidade de interações nas redes sociais, longe da minha família de sangue e tendo que criar uma nova família de escolha, explorando outras cidades, e constantemente procurando pelo novo e pela próxima coisa que me levaria a níveis de felicidade jamais alcançáveis pelos moldes antigos.

Ao completar quarenta anos de idade agora, tudo que eu comecei a comprar como um novo e definitivo estilo de vida mais “saudável”, há anos atrás, todas as verdades que eu vinha colecionando, morreram também.

O tipo de carreira e modo de trabalho que eu comprei para substituir o primeiro também se mostrou limitado e opressor, inclusive por conta de como trabalho, dinheiro e status continuavam com um papel muito central como referência de “pessoa que deu certo na vida”, de uma forma que cada vez mais me parece apenas um embrulho novo de uma mesma lógica consumista e viciada que o mundo corporativo havia corroborado.

A busca pelo “fora da caixa” me exauriu tanto quanto o dia a dia estressante em uma multinacional, que havia me feito colapsar antes. Com o adendo de que o mundo parecia muito menos complexo de navegar do que hoje.

E estou novamente em um processo de revisão.

Sim, tem um bando de dor nesse processo. Como pessoa com hiper-sensibilidade, acrescento bastante drama, o que cria muito sofrimento. Como pessoa com teimosia de sobra, acrescento bastante resistência, o que cria muita demora. Como pessoa com forte autocrítica, acrescento bastante julgamento, o que cria ansiedade.

Como disse uma terapeuta que me consultei, é preciso reconhecer que existe a fase de metamorfose da borboleta em que ela não é nem lagarta nem borboleta, ela está fechada no escuro do casulo vivendo como uma sopa amorfa de células, sabendo que não conseguia mais ser lagarta, mas ainda sem saber que vai ganhar asas e no que tudo isso vai dar.

Celebrar os 40 anos sem saber exatamente o que fazer da vida. De novo. Uhu! (exclamação irônica)

Há 10 anos atrás, eu achava que havia deixado para trás o que mais me causava dor e limitação, que tinha a ver com meu lado racional exaltado, com minha energia masculina tóxica no comando, com usar o referencial que meu entorno imediato ditava. Eu fui abraçar de peito aberto meu lado emocional oprimido, minha energia feminina adoecida, usar um referencial bem distinto de gente com experiências muito diversificadas. O feminino que despontou acabou suprimindo o masculino porque ele havia me machucado demais.

Agora, tenho que deixar para trás tudo isso também.

Hoje, vim aqui matar em praça pública muito do que sei sobre mim mesma como a “minha identidade”. Eu vou dizer para você que isso não é a primeira vez que faço isso, e desconfio seriamente que não será a última, e desconfio mais ainda que você já passou por isso e vai passar mais outras também. Ok, talvez você não o tenha feito tão em público, mas com testemunhas o suficiente para lhe confirmar o quanto você mudou.

Chegou o momento em que não dá mais para viver com nenhuma parte de mim subjugada à outra, ignorada ou taxada como tóxica ou má. Preciso fazer as pazes com essas duas partes de mim, não julgar o masculino porque me deixou doente do corpo e da mente, não julgar o feminino porque me deixou instável financeira e profissionalmente.

Pois cada fase e parte de mim me trouxe ganhos preciosos. Meu masculino foi capaz de criar uma carreira que me trouxe muitos recursos financeiros que financiaram boa parte da minha jornada de resgate do meu feminino. Meu feminino foi capaz de criar relações comigo mesma e com outras pessoas que me trouxeram muitos recursos emocionais que me suportam na minha jornada de resgate do meu masculino. Uma jornada para o resto da minha existência.

Para mim, não é possível mais viver fragmentada.

Minha fome agora é de integridade de todas as partes que me compõe sendo validadas em suas necessidades, e de aprender a usar a impermanência como alavanca de liberação, e não mais somente como fonte de sofrimento.
Meu alimento agora é o amor como base da minha conexão comigo mesma e com as demais pessoas e seres, a partir do fato de que todas as parte de mim e do mundo que existem são válidas e oferecem nutrição para minha alma, ainda que muito não faça sentido lógico ou óbvio.
Meu modo de preparo agora é a autenticidade nas ações do dia a dia, de tudo que faz parte do que entendo sobre minha identidade, para ter mais consciência quando há apego ou aversão.
E meu utensílio principal, nessa cozinha, agora é a intuição, pois não há manifestação mais pura e linda da união de feminino e masculino, de racional e emocional, de sinergia de todas as partes que nos compõe e ao mundo, do que a manifestação de uma sabedoria que é ao mesmo tempo inata e construída.

Quando eu sofrer, que essa seja minha referência, que não vem de fora e não vem de dentro, mas vem de ambos e de lugar algum. Quando eu sofrer, que eu não tente abafar e me livrar do sofrimento, e sim me alie ao que me causa dor porque ali tem muito além de aprendizado, tem amor também. Quando eu sofrer, que eu não me culpe ou culpe aos outros ou ao mundo, porque no lugar de criar mais sofrimento, eu faço um voto de criar mais alegria e compaixão.

E que quando eu sentir contentamento e conexão, que eu me lembre que ela é verdadeira sim, e é uma parte válida e importante da vida. E que mesmo que isso também não fique para sempre, não importa a carreira ou estilo de vida que eu escolha, que eu possa me deliciar com o que essa experiência me proporciona, e compartilhá-la com mais seres, não como uma forma de tentar anular os sofrimentos ou me mostrar bem para os outros, e sim como mais uma das muitas coisas que somos capazes como humanos.

E que mesmo que eu já tenha falado muitas dessas palavras antes, e mesmo que eu venha patinando muito em praticar tudo isso, que eu vá para além de me julgar, me perdoar, recolher os caquinhos, e seguir em frente. Que eu simplesmente relaxe e viva.

Originally published at https://medium.com on May 20, 2019.

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