Aquametragem, ou, as razões pelas quais o Narciso Moderno em breve não terá mais Água para se afogar.

Moisés Simões
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8 min readSep 30, 2019

Por Tadeu Sarmento e Moisés Simões.

Diante da água que lhe reflete a imagem, Narciso sente que sua beleza continua” — Gaston Bachelard, A Água e os Sonhos.

O curta-metragem de animação Aquametragem, da cineasta portuguesa Marina Lobo, foi o grande vencedor deste ano na categoria “Proteger nosso planeta”, do Festival de Filmes dedicados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), financiado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Em pouco mais de seis minutos, o filme é um alerta lúdico, porém, contundente, que aponta para a necessidade de uma mudança de hábitos frente ao desperdício de um recurso cada vez mais finito e escasso no planeta: a água.

Aquametragem, curta animação por Marina Lobo premiado no Protect Our Planet Award United Nations, 2019

Mas finito por que razão, se observando fotos de satélite do nosso planeta, veremos que grande parte dele é constituída de água? Não são estas faixas azuis recortando todo o globo (sim, globo, para desespero dos terraplanistas)?

Planeta Terra do Sistema Solar, fonte: NASA

A razão é simples: o que vemos nas imagens da NASA são os mares e oceanos de água salgada cobrindo quase todo o globo, os quais são impróprios para o consumo por conterem grande quantidade de cloreto de sódio. Comum em países desérticos ou com pouco ou nenhum acesso à água potável, a dessalinização de grandes quantidades deste tipo de água requer investimentos de infraestrutura consideráveis, sendo, por hora, economicamente pouco viável para grande parte dos países.

A água doce e potável, portanto, representa apenas 3% dos 75% de água que compõem o planeta, com o agravante de que, destes 3%, apenas um terço é acessível. O restante está condensado, de maneira desigual, em geleiras, calotas polares e lençóis freáticos profundos[1].

E a situação só se agrava. Segundo estimativas recentes da Global Footprint Network[2], o planeta já entrou em estado de sobrecarga, a partir do qual o consumo de recursos naturais essenciais à vida humana é quase duas vezes maior que a capacidade da Natureza de se regenerar. Diante disto, especialistas em mudança climática que assessoram a ONU se reuniram em Genebra em agosto deste ano, para apresentar um estudo, realizado por 107 pesquisadores de 57 países, que aponta para a necessidade de mudanças que sejam capazes de frear o desmatamento, a desertificação e o desperdício, para que todo o ecossistema não entre em colapso, levando todos nós juntos.

O temor em conjunto é um cenário catastrófico onde o planeta, comparado a um cachorro na música “As aventuras de Raul Seixas na Cidade de Tor”, livre-se de nós com um sacolejo, como se fôssemos pulgas, conforme cantava já na década de setenta o compositor baiano.

Se a água se torna preciosa, torna-se seminal” — Gaston Bachelard, A Água e os Sonhos.

E é este azul ameaçado que predomina na paleta de cores do Aquametragem. No filme, são listados todos os erros que cometemos, tanto individual quanto coletivamente, por não tomarmos consciência da finitude deste recurso essencial: tempo excessivo de uso, má gestão, desperdício, produção de gases de efeito estufa durante o tratamento da água, consumo excessivo na pecuária e agricultura, no desperdício de comida, alterações climáticas.

E à medida que o curta avança, o azul vai sendo substituído pelo vermelho que sugere calor, deserto, escassez, secura, só retornando quando as medidas começam a ser aplicadas: reduzir consumo e desperdício, reciclar e reutilizar a água (recorrendo a origens alternativas), etc.

Tais medidas propostas no curta estão de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos pela ONU, e que incluem ações contra as mudanças climáticas, gestão sustentável dos recursos hídricos e de energia, industrialização inclusiva, redução da desigualdade, promoção de padrões de consumo toleráveis, além de outros dezessete objetivos, que devem ser implementados em todos os países até 2030. No cerne das ações, a ideia de que todos estes objetivos estão interligados e são, de certa forma, interdependentes.

“Assim, a água se torna uma espécie de pátria universal” — Gaston Bachelard, A Água e os Sonhos.

Não é de hoje que a ONU se preocupa com a questão da escassez de água no mundo, estimulando iniciativas artísticas, educacionais e econômico-políticas que despertem a consciência das pessoas sobre o assunto. Seus dados dão conta de que, no mundo inteiro, já são 2,1 bilhões de pessoas sem acesso à água tratada, sendo a falta de água potável responsável pela morte de 1,7 milhão de crianças por ano. A intenção da ONU em premiar projetos como o Aquametragem é trazer o problema para além das fronteirais nacionais, chamando à responsabilidade e compromisso a humanidade como um todo, uma vez que, extinta a água, com ela se extingue todas as formas de vida que conhecemos.

O compromisso é a palavra-chave. Sem ele, de nada adianta criar ficções científicas (como a do filme Interestelar[3]) que coloquem astronautas em busca de um “buraco de minhoca” capaz de conduzi-los até um planeta habitável fora do nosso sistema solar; se, chegando lá, também trataremos de destruí-lo em bem pouco tempo. A saída mais lógica, prática, barata e fácil é cuidar deste planeta que temos, no qual vivemos não para pilhá-lo como se não houvesse amanhã, mas para cuidar dele como se fosse a nossa casa. E é.

“Cogito ergo sum” — René Descartes, Discurso sobre o Método.

Indicada ao Nobel da Paz deste ano por sua luta contra as mudanças climáticas, a jovem ativista ambiental sueca de 16 anos, Greta Thunberg, bradou: “vocês estão falhando conosco”, dirigindo-se aos líderes mundiais presentes na Cúpula de Ação Climática das Nações Unidas no último dia 23 de setembro.

E estão mesmo. Faz tempo que o modelo predatório, base da relação do homem com a Natureza e representado ali pelas nações mais poderosas e industrializadas do mundo, não é mais viável. Insistir nele é persistir em um erro que pode nos custar muito caro. Um erro político e econômico, com implicações desastrosas, e cujas origens remetem a um erro de raciocínio, elevado à categoria de verdade universal. Vamos a ele.

Tudo começa quando, para erguer as bases do método científico, Descartes aplica, em seu célebre Discurso sobre o Método, a dúvida como regra geral do conhecimento objetivo, passando a desconfiar de tudo aquilo que lhe chegava à consciência pelos sentidos. Para tanto, foi eliminando passo a passo, por exclusão, qualquer tipo de apreensão da realidade sobre a qual pairasse a menor sombra de incerteza.

O procedimento se repetiu até que o filósofo francês chegasse à única constatação inabalável, sobre a qual poderia reconstruir todo o seu novo edifício teórico: a de que tudo poderia ser colocado à prova, menos o fato de que aquele que duvidava, existia. “Penso, logo existo” (em latim, Cogito ergo sum).

Estava fundamentada, nesta expressão, a base cientificista da sociedade ocidental. Até aí tudo bem. O erro foi a concepção de um sofisma na esteira desta descoberta de Descartes, ou seja, de um desdobramento que, embora simule estar de acordo com as regras internas da lógica, apresenta, na verdade, uma conclusão inconsistente e deliberadamente enganosa. Que sofisma foi este? O de considerar como dada a separação entre aquele que duvida (logo existe, ou seja, a res cogitans, ou “coisa pensante”) daquilo do que se pode duvidar (logo, que não existe, isto é, a res extensa, ou o “objeto”).

Em outras palavras: ao apartar o homem da Natureza, o pensamento cartesiano colocou-o no centro de um jogo onde poderia intervir e investigar toda a res extensa, hipnotizado pelo falso resultado de que seria uma entidade à parte dela, logo, que dela não necessitasse. Erro crasso, que formalizou o modelo exploratório aventado no Livro do Gênesis, onde Deus teria criado toda a Natureza para servir a Adão, e efetuou a passagem silenciosa da metafísica para a técnica.

“É que Narciso acha feio o que não é espelho” — Caetano Veloso, Sampa.

Por serem uma das primeiras tentativas de representação da realidade, os mitos antigos têm aquilo que podemos chamar de “orgulho do pioneiro”. Entre eles, o mais célebre talvez seja o mito grego de Narciso. Segundo a mitologia, Narciso era um jovem caçador que, por ser filho de um deus com uma ninfa dos rios, nasceu com uma beleza estonteante, pela qual todas as demais ninfas se apaixonavam. Uma delas, chamada Eco, ao ver seu amor recusado pelo galã, armou uma cilada para ele: atraiu-o para um rio no qual, depois de ver seu reflexo espelhado na água, enamorou-se de si mesmo e mergulhou para agarrar a si próprio, morrendo afogado.

Para além de uma explicação mitológica para a formação de nossa autoimagem, Narciso se inscreve na falsa ideia de uma consciência separada dos processos naturais, que vai até Adão, passa por Descartes e culmina na descoberta de um método científico cujo único objetivo é dominar a Natureza.

O que temos é o paradigma de seres humanos que, enxergando a Natureza de forma apartada, veem sua autoimagem projetada a partir da maneira como lidam com ela. É sobre esta autoimagem e essa separação que se assentam as bases da sociedade ocidental de hoje. É este o modelo que precisa ser interrompido, e os esforços já demonstram que estão sendo, uma vez que as mudanças climáticas e suas consequências já lançaram o alerta de que somos parte da Natureza, e desapareceremos se não a tratarmos como interligada à nossa vida.

“Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos” — Nietzsche, Genealogia da Moral.

Aquametragem está disponível para assistir no Youtube[4]. Vale cada minuto. Não somos os senhores da Natureza, nem podemos fazer com ela o que bem entendermos. Em vez disso, devemos usar seus recursos com parcimônia, uma vez que são finitos, e apenas para suprir nossas necessidades com vistas às futuras gerações.

Tampouco a preocupação com o meio ambiente é uma “neurose esquerdista”, como querem crer os inimigos da razão que, em tempos de redes sociais, declararam guerra ao bom-senso e ao conhecimento. Tais preocupações são respostas a um fato que já está dado, caso você acredite na Ciência, não em unicórnios: a crise dos recursos naturais é uma realidade. Se não agirmos agora, rompendo não apenas com modelos paradigmáticos de consumo, mas, sobretudo, de pensamento, é bem possível que, no futuro, não sobre a Narciso sequer uma poça d’água para se afogar.

Vamos juntos que dá tempo!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Consenso Tecnologia.

Referências

[1] https://educacao.uol.com.br/disciplinas/geografia/agua-potavel-apenas-3-das-aguas-sao-doces.htm.

[2] https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/07/29/sobrecarga-da-terra-2019-planeta-atinge-esgotamento-de-recursos-naturais-mais-cedo-em-toda-a-serie-historica.ghtml?fbclid=IwAR1Vr8WX6MCK5p4oX4r0O2L2XrkwfQBEuSoFn8vjhh7uVmcYpf8WFEao8g8.

[3] https://www.youtube.com/watch?v=BYUZhddDbdc.

[4] https://www.youtube.com/watch?v=5P6IA7hcUuQ.

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Moisés Simões
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Mestre em Engenharia de Software, vivendo no meio de desenvolvimento de software e imergido no desenvolvimento de negócios GovTech