Diversidade e tecnologia: quando juntar as diferenças se torna um valor mensurável

Moisés Simões
consenso-blog
10 min readJan 26, 2021

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Vivemos hoje na chamada era da informação, do conhecimento e da transformação digital. Em tese, um tempo em que as oportunidades deveriam surgir para todos aqueles que detêm boas ideias na mão, independentemente de sua cor, classe ou orientação sexual. Em certo sentido isso é verdade. Por outro lado, o esforço e o mérito individual, embora existam, não podem ser convertidos em bandeiras de sua própria exceção à regra, na tentativa de justificar todo um excludente sistema social. Ou seja: a meritocracia é, e continuará sendo, uma falácia, ao menos enquanto se encontrar vedado à maioria o acesso à formação e ao estímulo para que determinadas pessoas sigam a trajetória necessária até o nascimento dessas boas ideias.

Se pensarmos no nosso universo tecnológico, a pesquisa “Quem Coda o Brasil?” (realizada pela PretaLab em 2019) revelou que o mercado nacional de tecnologia é composto predominantemente por homens (68,3%) e pessoas brancas (58,3%). Em um país composto majoritariamente por pessoas que, no mesmo ano, declararam-se negras e pardas (56,10%, segundo o IBGE), os números demonstram que o binômio tecnologia e diversidade ainda tem um longo caminho a percorrer, rumo à superação do racismo estruturado em nossa sociedade. Do machismo também, já que as mulheres que constituem 31,7% da fatia do mercado tecnológico, representam a maioria (51,8%, segundo o IBGE) da população.

Claro que a pauta da inclusão e da promoção da diversidade está presente no discurso de dez entre dez empresas de tecnologia, tanto em iniciativas de marketing interno quanto externo. Este pequeno artigo é direcionado justamente para aqueles que querem passar do discurso à prática, não só pelo valor que essa prática agregará à imagem da empresa (dentro e fora dela), mas sim, principalmente, pela constatação de que diversificar equipes, criando uma cultura empresarial que favoreça a inclusão, é um ativo de alto valor competitivo, que pode ser vendido como diferencial.

Para que isso ocorra, o primeiro passo é reconhecer nossos privilégios. E esse reconhecimento passa primeiramente pela derrubada de uma antiga tese: a de que o campo da tecnologia é a Suíça.

A tecnologia não é neutra!

Longe disso. Ou como diria o historiador da tecnologia Melvin Kranzberg, “tecnologias não são boas, nem ruins; muito menos neutras”. Na verdade, o mito da neutralidade da tecnologia vincula-se ao da neutralidade da ciência. Em um artigo publicado na Revista Cult (Tecnologia e Política em Marcuse, 2010) a filósofa e professora da Universidade Mackenzie, Marília Mello Pisani, analisou com cuidado essa questão. Para ela, a tese da neutralidade da ciência desempenhou, no início do projeto científico, um papel importante, qual seja, o de libertar ciência e técnica das normas impostas pela igreja, permitindo que suas pesquisas passassem ao largo do dogmatismo e da superstição medievais. Porém, ultrapassada essa conjuntura histórica, na qual Descartes precisava garantir o tempo inteiro que suas teses não abalariam os alicerces da igreja, essa ideia deve cair por terra de maneira definitiva.

Fonte: Dexter’s Laboratory — Cartoon Network

Desse modo, a tecnologia não pode ser entendida como um corpo de conhecimentos que funciona apartado da sociedade, em uma torre de marfim e desligado dos processos históricos. Pelo contrário, ela está impregnada de relações de poder. Se “código é poesia”, segundo versa o slogan dos programadores, ele também está estruturado sobre a visão de mundo, ponto de vista e origem social de quem o coda. Dito isso, a pergunta: a quem interessa manter a ideia dessa neutralidade, senão àqueles que riem toda vez que Dee Dee, no desenho Laboratório de Dexter, faz de tudo para que seu irmão, o cientista homônimo ao título, largue a ciência e venha brincar com ela (como bem lembrou Beatrys Rodrigues). 31,7% de mulheres no mercado tecnológico, lembram? Sendo elas 51,8% da população. Em outras palavras: percentualmente, Dee Dee deveria estar, no mínimo, formando uma equipe com seu irmão.

Ocultos no código estão os valores e a visão de mundo de seus criadores. Como não faziam parte dessa classe social, os criadores do iFood não previram o impacto social que seu aplicativo teria sobre os entregadores de moto e de bicicleta, explorados pelos restaurantes. Ou seja: a tese de uma tecnologia neutra atende, hoje, aos interesses velados daqueles que, querendo manter seu lugar de privilégios, preferem seguir pastando em meio aos unicórnios sem saber que unicórnios não existem.

Ou seja: a tese de uma tecnologia neutra atende, hoje, aos interesses velados daqueles que, querendo manter seu lugar de privilégios, preferem seguir pastando em meio aos unicórnios sem saber que unicórnios não existem.

Alguém precisa começar!

Após reconhecer nossos privilégios, o segundo passo rumo à diversidade, competência e equidade no mercado tecnológico é entrar em ação. Podemos começar fazendo algumas perguntas. Por exemplo: quem está por trás da tecnologia, produzindo os aplicativos, as plataformas, as soluções? O Olabi sabe muito bem. Por isso essa organização social é focada na promoção da diversidade e na produção de tecnologias. Sua meta é democratizar essa produção, tirando-a das mãos dos privilegiados de sempre, na busca de um equilíbrio e de uma sociedade socialmente mais justa. Lendo o site da iniciativa, é possível pescar palavras como descentralização, diversificação, liberdade.

E se a exclusão de pessoas da tecnologia é paralela à sua exclusão da educação, o Olabi elabora metodologias e conteúdo que buscam corrigir essa disparidade racial e de classe, oferecendo espaços criativos e multidisciplinares onde os comumente excluídos (negros, pobres, mulheres) possam ter acesso e desenvolver projetos ligados à eletrônica, robótica, inteligência artificial, fabricação digital, design, dentre outras técnicas.

Outra iniciativa importante na busca por um mundo digital mais inclusivo, com ênfase nas questões de gênero, é a progra{m}aria, cuja missão é “empoderar mulheres através da tecnologia, diminuindo o gap de gênero no mercado de trabalho”. No centro de suas ações e pesquisas, está a constatação de que o déficit de profissionais qualificados na área de TI no Brasil é muito grande, e que são as mulheres que, por serem mais escolarizadas, devem aproveitar a oportunidade para suprir essa lacuna, aprendendo a programar e a desenvolver soluções na área. E para as Dee Dee’s que querem de fato se engajar, a progra{m}aria busca “rever” as “narrativas culturais que dizem o que uma mulher pode ou não fazer, além de oferecer ferramentas e oportunidades para que elas aprendam”. O mais interessante sobre o trabalho da progra{m}aria é a demonstração de que, no geral, o senso comum que afirma que mulheres não se interessam por tecnologia não é um fato verdadeiro e que, na verdade, elas não se interessam pela simples razão de que sequer passou pela cabeça delas que elas poderiam tentar. E por que não? Porque existe um paradigma asseverando que esse campo do conhecimento não é para elas. É sobre essa mudança paradigmática que a progra{m}aria mais atua.

Já a WoMakersCode é a maior rede feminina de tecnologia da América Latina, e opera no sentido de conectar mulheres em torno da tecnologia e da inovação, através de fóruns de debate e promoção de eventos, tanto locais quanto nacionais e internacionais. A comunidade já capacitou mais de 30 mil mulheres, um número de interessadas por si só indicativo de que a exclusividade masculina na área é uma falácia que busca normalizar um privilégio imposto pela nossa cultura.

Querem mais informações? 4% é o número de mulheres negras entre fundadores de startup nos EUA, e apenas 10 mulheres negras se formaram na Escola Politécnica da USP em 120 anos. Estes são dados colhidos pelo levantamento PretaLab , e que aponta para “a necessidade e a pertinência de incluir mais mulheres negras na inovação e na tecnologia”. O levantamento demonstra que mulheres negras, localizadas na base da pirâmide social, têm que vencer não apenas os estereótipos de gênero, mas sobretudo o racismo sob o qual nosso país foi fundado. Considerando que cada vez mais é a tecnologia que media o conhecimento, e que “sonhamos com aquilo que vemos”, o PretaLab trabalha em cima de dois pilares básicos: acesso e referência. Em seu site, é possível entrar em contato com várias iniciativas agregadoras, que buscam provar, na prática, que a disparidade de gênero e raça no mercado de tecnologia não pode ser naturalizada sob o disfarce da “aptidão” ou da “meritocracia”, sendo antes um conjunto de construções sociais que “limitam o escopo de atuação da mulher desde seu desenvolvimento na infância. Mães e pais não sonham que suas filhas se tornem programadoras, tampouco as meninas encontram muitas referências femininas nas áreas de exatas”.

"Querem mais informações? 4% é o número de mulheres negras entre fundadores de startup nos EUA, e apenas 10 mulheres negras se formaram na Escola Politécnica da USP em 120 anos".

— PretaLab

Em conjunto, essas três iniciativas, mais o levantamento PretaLab (realizado pelo Olabi) apontam para uma conjuntura que exprime uma série de circunstâncias não aproveitadas por pessoas capazes de contribuir ou de, até mesmo, revolucionar o mercado de tecnologia — seja programando, seja desenvolvendo seus próprios projetos e startups. A escassez de diversidade na área tecnológica, portanto, é um desperdício maciço de pessoas, ideias e talentos que poderiam impulsionar a criatividade do setor como um todo. E é aí que as empresas devem entrar para evitar isso!

Equipes diversificadas são equipes bem mais criativas!

Como a turma da iniciativa Vai na Web costuma dizer, são as empresas que devem “liderar o desenvolvimento de uma nova força de trabalho na qual pessoas e máquinas inteligentes trabalhem juntas para ampliar a produtividade, a inovação e o uso eficiente de recursos”. E onde buscar essa força de trabalho do futuro? Segundo eles, nas comunidades periféricas, em uma tentativa de qualificar uma mão de obra historicamente mal aproveitada, em prol das demandas da indústria.

“Não espere nada do centro, se a periferia está morta”.

— Fred 04, poeta do nosso manguebeat

“Não espere nada do centro, se a periferia está morta”, reza Fred 04, poeta do nosso manguebeat; movimento o qual, aliás, lançou antes, no campo cultural, as sementes dessa mudança de perspectiva. E a periferia está viva. Bem viva. Basta navegar no site da Vai na Web para verificar isto. A questão macro que se contrapõe está mais em uma elitização dos grupos de decisão na área tecnológica, e em certa preguiça mesmo em querer romper essa segregação, por conta das vantagens pessoais desse apartheid. Que vantagens? Para citar só uma, a inflação salarial dentro de um núcleo muito pequeno, alicerçado em um recorte onde pessoas ganham mais graças à pouca oferta de profissionais qualificados. De maneira que o profissional elitizado que goza desse privilégio salarial não quer abrir mão disso. O problema? Essa inflação não se justifica, diante de um mercado que rechaça pessoas de outras origens sociais; pessoas, aliás, cujos salários mais justos dentro da área tecnológica fariam a diferença na hora de girar a roda econômica das comunidades de onde vieram.

“Equipes executivas têm 33% mais chances de crescer sua rentabilidade investindo em diversidade cultural e étnica” (Vai na Web) . Ou seja, uma empresa com uma equipe mais diversa (étnica, sexual e socialmente) é uma empresa com mais chances de acertar, de dar certo. E acertar mais vezes, de forma mais eficiente. Pois é da oposição que vêm as melhores soluções (“a oposição é a verdadeira amizade”, já dizia o filósofo William Blake). Pensem bem. Em uma equipe onde todos são apenas uma versão com leves variações de você mesmo, caso você tenha uma ideia equivocada, as chances de ter que carregá-la nas costas por muito tempo, sem perceber o quão errada ela é, são grandes.

Os saltos inovadores, evolutivos, portanto, ocorrem quando as pessoas contestam o senso comum, indo adiante daquilo comumente apresentado durante o percurso na busca das soluções. Isso só é possível na intersecção de diversos pontos de vista sobre um mesmo problema. Se todas as pessoas de uma equipe possuem a mesma bagagem cultural, arcabouço, visão de mundo, orientação sexual e origens sociais, o embate criativo praticamente vai inexistir, com todos chegando às mesmas conclusões. Quanto mais divergência, mais enriquecedor será o consenso.

"Em uma equipe onde todos são apenas uma versão com leves variações de você mesmo, caso você tenha uma ideia equivocada, as chances de ter que carregá-la nas costas por muito tempo, sem perceber o quão errada ela é, são grandes".

A diversidade é a meta a ser alcançada em todas as áreas. Sobretudo na área tecnológica. Basta pensarmos na seguinte relação: quanto maior o alcance da sua plataforma, do seu produto, mais a equipe precisa ser diversa, uma vez que a fatia da população que será afetada diretamente por suas soluções, encontra-se historicamente excluída dos processos de decisão. E sejamos honestos: nossa indústria tecnológica é majoritariamente branca, de alto poder aquisitivo, e desconhece outros cenários para além dos seus jardins. Por isso, costumamos criar pensamentos macros em cima das maneiras como os problemas devem ser resolvidos. Ocorre que essas visões gerais não passam muitas vezes de generalizações dos nossos próprios preconceitos. Enxergar isso é o mais difícil.

Nesse sentido, a estratégia de diversificar nossas equipes é, na verdade, uma oportunidade de potencialização de lucros e oportunidades. Na exploração de algo que viralize, empresas que não investiram na diversidade se tornarão muito frágeis, incapazes de resistir a um teste de usabilidade mais profundo e de longo alcance. Além disso, diversificando equipes você cria uma cultura empresarial que não é muito comum, e que pode ser vendida como diferencial competitivo.

Concluindo!

O caminho para a diversificação não tem mágica nem segredos, nem pode se restringir apenas às ações de endomarketing e de esclarecimento das questões sociais da diversidade. É preciso trazer gente diferente para dentro. Simples assim. E como fazemos isso? Através dos programas de capacitação e de contratação de novas pessoas, que precisam ter um foco na diversidade, na priorização da diversidade, tendo sempre em mente que pontos de vista diferentes são fundamentais nas discussões de requisitos, de propostas de usabilidade, de testes de experiências de usuário. Fomentar a inclusão gera valor interno, mas também um valor percebido externamente de forma muito rápida. Um valor facilmente mensurável, no fim das contas.

Referências!

Quem coda no Brasil?

https://www.thoughtworks.com/pt/enegrecer/quemcodaobrasil

IBGE

https://www.ibge.gov.br/

Olabi

https://www.olabi.org.br/

progra{maria}

https://www.programaria.org/

WoMakersCode

https://womakerscode.org

PretaLab

https://www.pretalab.com

Beatrys Rodrigues

https://www.youtube.com/watch?v=t3ruH5Mr-mw&t=500s

Vai na Web

https://www.vainaweb.com.br

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Moisés Simões
consenso-blog

Mestre em Engenharia de Software, vivendo no meio de desenvolvimento de software e imergido no desenvolvimento de negócios GovTech