Aeronautas: ao se viajar no balão da lacração, quem morre primeiro é a História
Em Os Aeronautas (The Aeronauts, 2019) a pressão por progressismo e lacração transformam o que poderia ser um belo filme num pastiche de feminismo rasteiro.
Trata-se de um dos filmes com o melhor tratamento visual que vi nos últimos tempos. Um primor em fotografia, direção de arte, e cinematografia. Só que tem um porém. Um porém enorme. Um porém do tamanho de um balão a gás, com cestinha e tudo.
Ao fazer um filme que retratasse as aventuras de James Glaisher (um cientista real, personagem histórico, transformado no filme em um mero nerd, covardão, desajeitado, inseguro e ridicularizado) e Amelia Wren, uma aeronauta circense/socialite/cientista/milionária — praticamente uma cruza de Tony Stark com Lara Croft da era vitoriana — que perdeu o marido também aeronauta em um acidente de balão, uma injustiça histórica é feita.
O filme omite não só a existência do parceiro de pesquisas de Glaisher, o também cientista Henry Tracy Coxwell, como também omite a importância de Glashier, um pioneiro dos primórdios do estudo da meterologia, que ao realizar 28 vôos experimentais entre os anos de 1862 e 1866, conseguiu através dos seus estudos (e sem nenhuma versão vitoriana da Lara Croft dando cambalhotas por cima do balão), transformar uma ideia inicialmente ridicularizada em um ramo real, relevante e respeitado da ciência.
Ao tentar fazer um revisionismo histórico canhestro, o filme causa um estranhamento. E o estranhamento não ocorre por fazerem algo que o cinema já fez várias vezes (com qualidade, intenções e resultados variáveis), mas pela maneira covarde com que o fazem. Ao invés de terem a coragem de fazer o revisionismo de maneira crítica, militante ou ideologicamente motivada, porém ao menos admitindo claramente que o fazem, ou criando uma história do tipo realidade paralela, ou até deixando explícito na própria obra se tratar de uma alegoria pretendendo o resultado desejado, o que acontece é um escamoteamento totalmente fake da história real. Fazem todo um teatro de intenções disfarçadas, onde um personagem real (não apenas um, mas o principal personagem da história real) é diminuído, e outro personagem histórico é sumariamente eliminado. E arrematam o teatro de intenções com a inclusão de uma personagem fictícia que passa a ser não só a razão de ser, mas também o ponto focal, a figura heróica a ser glorificada, e também o “deus ex machina” supremo da trama. Enquanto a farsa se desenrola através do roteiro, o tempo todo tenta-se em paralelo, vender (malandramente) a trama como algo bem próximo da realidade, quando não é o caso.
Contribui definitivamente para esse cenário de desonestidade intelectual o fato de que a forma como escreveram a personagem principal tem muito mais a ver com um wishful thinking-fetiche da juventude de hoje e nada, absolutamente nada a ver com a realidade da época, nem mesmo com a realidade das personagens pioneiras em quem os criadores alegam terem se inspirado para criá-la. Tivessem realmente tentado se inspirar nas heroínas do passado, e não fazer média e proselitismo com as fantasias revolucionárias-fake de uma parcela iludida e adestrada do público atual, mesmo a presença dessa personagem fictícia poderia ter se tornado um ponto a honrar o filme, e não algo que fizesse com que ele parecesse o engodo que é.
Uma pena. Um filme tão belo tecnicamente merecia um roteiro e intenções menos proselitistas por trás de sua produção. Nessa viagem de balão tão perigosa quanto bela, a primeira vítima foi a História. Já a honestidade… bem, essa sequer subiu a bordo.