Como Stálin e a União Soviética Criaram um Champanhe para a Classe Trabalhadora

Quando líderes autoritários ficam obsessivos a respeito de um item alimentício em particular, tal fato pode mudar os hábitos alimentares de um país por gerações. Neste texto, uma observação a respeito do projeto de Stálin e o que ele revela a respeito do poder da comida.

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Uma livre tradução do artigo “How Stalin and the Soviet Union Created a Champagne for the Working Class” , de Jessica Gingrich para o site Atlas Obscura.

No início da década de 1930, uma fome catastrófica varreu a União Soviética. O caos da coletivização socialista, combinado com colheitas pobres e uma política socioeconômica centralizada e brutal foram responsáveis por devastar as regiões produtoras de grãos do país. Milhões morreram de fome. Cadáveres se acumulavam à margem das linhas férreas e estradas, enchendo o ar com o fedor azedo da decomposição. Hordas de camponeses famintos vagavam pelos campos, procurando desesperadamente por trabalho e por qualquer coisa remotamente comestível: espigas de milho, bolotas de carvalho, grama, gatos, cachorros, e mais horrivelmente, até uns aos outros.

Recolhimento de cadáveres no Holodomor, a grande fome de 1932–33
“Seis milhões perecem na fome soviética — colheitas dos camponeses confiscadas, eles e seus animais morrem de fome”

Em 1936 o Partido Comunista de repente mudou da postura de denúncia ao espumante para sua produção em massa.

Apenas três anos depois, enquanto gêneros de necessidade básica ainda eram escassos, o Kremlin voltou sua atenção para outra escassez: a falta de champagne. Em 1936, o governo soviético aprovou uma resolução para aumentar dramaticamente a produção de vinho espumante, estabelecendo uma meta ambiciosa de produzir milhões de garrafas pelos anos seguintes.

A idéia de criar uma indústria comunista do champanhe — uma tarefa hercúlea, dado o contexto — veio diretamente de Josef Stálin, que era nativo da República da Geórgia, lar da mais antiga cultura vinícola do mundo. Ele proclamou que o champanhe era “um importante sinal de bem-estar, da boa vida” que o socialismo iria tornar acessível a todos — uma forçada de barra bem distante da simples promessa de Lênin a respeito de “pão e paz.”

O empurrão para o desarrolhar de um mar de champanhe veio apenas um ano após o cancelamento dos cartões de racionamento, que ocorreu em 1935. Desesperado para mostrar que a URSS tinha mais a oferecer que privação de direitos e perseguição aos cidadãos por parte do estado, o governo lançou um esforço concentrado para produção em massa e democratização de champanhe e outros produtos de alto padrão.

“Comissariado Popular da Indústria de Alimentos / Administração Chefe da Indústria Vinícola — Beba Champanhe Soviético!”

“A idéia era fazer com que coisas como champanhe, chocolate e caviar se tornassem disponíveis a um preço tão acessível que eles poderiam dizer que o Novo Trabalhador Soviético vivia como os aristocratas do velho mundo,” explica Jukka Gronow, autor do Livro Caviar with Champagne: Common Luxury and the Ideals of the Good Life in Stalin’s Russia.”

Mas antes que o proletariado pudesse estourar seu champanhe, os vinicultores precisavam produzir o espumante. E barato. Isso requeria produção industrial em grande escala, o que não era possível utilizando-se do método tradicional de envelhecimento em garrafas. A resposta para isso veio do vinicultor Anton Frolov-Bagreyev, que desprezou o processo francês de fermentação em garrafa em favor de um método que utilizava-se de tanques pressurizados, que condensavam o processo de maturação de três anos para um mês e permitia que lotes de 5 a 10 mil litros fossem produzidos em tempo.

Para transformar a retórica borbulhante de Stálin em uma realidade, o governo soviético derramou uma enxurrada de resoluções. Burocratas ordenavam a construção de novos vinhedos, fábricas e armazéns, assim como o recrutamento e treinamento de milhares de novos trabalhadores. Recursos foram remanejados, e o Banco Estatal abriu uma linha de crédito especial dedicada a financiar a iniciativa de muitos milhões de rublos.

A ambição da visão de Stálin foi refletida em metas de produção oficiais, que projetavam a nascente indústria produzindo 12 milhões de garrafas por ano em 1942. Desde que o champanhe tinha sido condenado como uma indulgência burguesa, muitos vinhedos tinham sido destruídos ou reaproveitados para o cultivo de outras lavouras. Os vinhedos estatais remanescentes eram escassamente operacionais.

O estado de penúria da vinicultura soviética tornou as metas de produção impossíveis de atingir. “As projeções nunca foram realistas, mas se as fábricas não as atingissem, seus funcionários ou os seus gerentes poderiam ser rotulados como inimigos do povo e expurgados,” explica Darra Goldstein, um estudioso dos alimentos e autor do livro Beyond the North Wind: Russia in Recipes and Lore. Quando a vinícola Abrau-Durso na costa russa do Mar Negro não atingiu as expectativas de produção em 1938, o periódico soviético Izobilie (“Abundância” em russo… quão irônico!) questionou a lealdade de seu diretor e sugeriu que a vinícola fosse “limpa dos inimigos da classe trabalhadora.” Em se tratando de União Soviética, sabemos hoje muito bem o que significava essa “limpeza”.

Trabalhadores soviéticos colhem uvas para produção de champanhe. © Serge Plantureux/Corbis via Getty Images

A produção de champanhe soviética priorizava quantidade sobre qualidade. Plantadores de uvas arrancaram acres de parreiras nativas desde a Moldávia até o Tajiquistão e as substituíram pelos cultivares resistentes, doces e de alta produção que agradavam ao gosto voraz de Stálin. Fábricas grandes e centralizadas processavam as uvas de toda uma região e enviavam a mistura bruta de vinho para enormes indústrias de engarrafamento, que cuspiam milhares de garrafas por hora utilizando o método de tanques de Frolov-Bagreyev e um sistema mecanizado de engarrafamento. O resultado era a Sovetskoye Shampanskoye, um vinho espumante e xaropento para o trabalhador soviético comum.

Um elegante arranjo de espumante soviético noCasaquistão . ©SPUTNIK / Alamy Stock Photo

“A Qualidade não era muito alta, porque tudo se tratava de produção em massa,” diz Goldstein. “Questões de gosto ou refinamento eram secundárias.” De fato, as fábricas frequentemente misturavam o vinho bruto com conservantes e açúcar para disfarçar sua baixa qualidade.

O sabor é frequentemente considerado doce demais para os paladares ocidentais, acostumados à pegada mais seca do champanhe Brut. “Pra mim, enquanto criança, aquilo sempre tinha um gosto de refrigerante, só que com álcool” diz Anya von Brezmen uma autora de livros culinários nascida na antiga URSS. “Tinha um tipo de doçura sutil e um gosto brega e divertido. Dava pra se empanturrar daquilo.”

“Era como a Coca-Cola da URSS. Simbolizava a boa vida soviética.”

Porém, por detrás da cortina de ferro, tratava-se do único espumante disponível, e para aqueles que cresceram no Bloco Oriental, seu sabor está indelevelmente misturado com camadas de lembranças e nostalgia. “É difícil separar o gosto da bebida de todo o resto que eu experimentei durante aquelas tardes quentes de fim de verão em Moscou ou nas margens altas do Rio Dnepr em Kiev na minha juventude,” conta Gronow.

Pelo fim daquela década, a Sovetskoye Shampanskoye era amplamente disponível em Moscou e outras cidades grandes, oferecida “on tap” em lojas. Mais tarde, nos anos 50, ela também era vendida em copos no Estádio Lênin. Enquanto permanecia cara demais para o consumo diário, a champanhe se tornou um importante aspecto ritual de todas as principais celebrações soviéticas. “Você não poderia imaginar uma celebração de ano novo sem champanhe. Era um requisito absoluto,” relembra Goldstein.

A produção em massa do champanhe soviético era parte de uma campanha de propaganda mais ampla, direcionada a exibir os “avanços” culturais e econômicos forjados pelo socialismo. “Era como a Coca-Cola dos soviéticos, simbolizava a boa vida soviética” diz Gronow. “Se tratava de um período muito contraditório. Havia toda essa indústria da felicidade que produzia filmes e comédias musicais inspiradores. O champanhe e o chocolate eram parte disso,” explica von Brezmen. “Havia bastante animação, mas ao mesmo tempo pessoas estavam sendo presas à noite e eram aterrorizadas.” O champanhe era propagandeado de forma colorida até nas laterais das temidas “Black Marias”, os camburões que transportavam prisioneiros das cidades soviéticas para os Gulags.

Black Maria

O paradoxo da Sovetskoye Shampanskoye destaca as contradições da vida por trás da Cortina de Ferro, onde as prateleiras dos mercados podiam até estar vazias, mas o champanhe estava disponível. “Isso mostra que a vida em um estado totalitário era complicada. Não era tudo apenas cinza e terrível,” diz von Brezmen. “Havia esses momentos de prazer e felicidade e celebrações que realmente tinham muito significado em um período que estava repleto de terror.”

Entretanto, as memórias desse tipo de leviandade estão abastecendo uma nostalgia soviética na Rússia moderna, e criando uma demanda por Sovetskoye Shampanskoye, que agora é produzida por empresas privadas. E também por outros sabores do período, que podem até mesmo ser apreciados em restaurantes que evocam cantinas comunistas. Ainda assim, a sede pelo champanhe soviético costuma borrar os limites entre as reminiscências e o revisionismo. “É um símbolo muito difícil. É brega e legal e divertido por um lado, mas era um período tão trágico,” diz von Brezman. “Eu acho que elas são um símbolo meio carregado. Como bombas ou coquetéis molotov em uma garrafa de champanhe.”

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Livre, plural, suprapartidário. Alternativa de pensamento à hegemonia esquerdista em Niterói, Rio, Brasil. Liberal, conservador. Menos Marx, Mais Mises!