Coringa
Na mesma semana que Martin Scorsese torna pública sua opinião negativa sobre os filmes de heróis, e neste sentido podemos apontar para a Marvel e para a franquia Vingadores que inaugurou o conceito de hiperblockbuster, a Warner/DC ironicamente traz para as telas o filme mais artístico já feito sobre um personagem de quadrinhos, o Coringa.
Dirigido e escrito por Todd Philips, que recentemente declarou que o politicamente correto acabou com os filmes de humor e por isso se motivou em trazer o maior sociopata e criminoso das HQs, dessa vez interpretado pelo aclamado ator Joaquin Phoenix, em uma história de origem preocupada em analisar como seria possível surgir um palhaço sociopata anárquico de forma verossímil.
A escolha do ator
Nada faz mais sentido que a escolha de Joaquin Phoenix para este papel. O ator está entre os mais talentosos de sua geração, capaz de personificar a fundo seus personagens, desenvolvendo voz, linguagem corporal e expressões faciais marcantes.
Se o Coringa de Heath Ledger trazia uma voz deformada e grave, uma língua saliente e uma cicatriz física, Phoenix traz uma persona infantilizada, um corpo magro que vai se deformando ao longo da história e uma cicatriz inusitada na forma de uma tosse que se manifesta a cada vez que sua mente abre mais espaço para a loucura.
Quanto à risada, característica principal do palhaço do crime, o ator desenvolve não apenas uma mas várias, desde a sincera quando acha algo engraçado até a patológica, que se manifesta nos momentos opostos, misturando e apresentando-as com diferentes nuances para acompanhar a caótica transformação do homem fracote e fracassado que se tornará o maior criminoso de Gotham.
A origem do Vilão
Arthur é um palhaço profissional e humorista de stand-up comedy sem público que vive de pequenos bicos na parte mais pobre da cidade de Gotham, que passa pelos piores dias de uma crise econômica que culmina na greve dos lixeiros. As doenças, os ratos, a insatisfação do povo e a resposta da elite ao problema transformam Gotham em um lugar de tensão extrema.
Todos são afetados por estas condições e ao passarem pela vida de Arthur contribuem para sua ruína. Os adolescentes que o agridem, o falso amigo que lhe dá uma arma, o chefe injusto, a mãe senil, a psicóloga incompetente, a namorada condescendente, o pai ausente, os ricos sem consciência social, os políticos inescrupulosos e o apresentador de televisão que é seu ídolo. Todos eles e seus atos, sejam verdadeiros ou mentirosos, reais ou delírios do protagonista, compõem a Gotham City hostil que o fará revelar sua verdadeira face.
E por mais que Philips descreva Arthur como um paciente psiquiátrico, triste e portador de pensamentos negativos, como ele próprio assume para a psicóloga em uma de suas desgastantes sessões, ele também é retratado como uma pessoa boa e ingênua que somente externaliza toda sua monstruosidade quando a cidade falha com ele e o tecido social prestes a se romper clama pela ascensão de alguém que os representante.
As Cores de Gotham City
Esta Gotham que oprime emocionalmente Arthur Fleck é um habitat de ruas sujas e abandonadas, becos escuros, vultos, sombras e degradação de todo o tipo. O verde predomina nos ambientes frios, o marrom nos claustrofóbicos e o amarelo nas roupas e nas luzes que incidem sobre o personagem em todos os momentos importantes para sua transformação.
A escolha dessas cores tem um propósito: verde e amarelo são as cores complementares ao violeta, a cor icônica do personagem nos quadrinhos. As cores duelam durante toda a película, se mesclam e se confundem, um artifício utilizado para reafirmar que o Coringa não apenas é um produto do meio em que vive mas a peça que está faltando.
Em uma análise inicial, a escolha das cores pode parecer confusa, principalmente o verde dos ambientes. A escolha em tons pastéis porém confirma que justamente a esperança está a abandonar aquela cidade e seus habitantes, e principalmente a mente de Arthur, que em seu pensamento distorcido é justamente o que traz equilibro e propósito.
O amarelo que envolve o personagem também representa a centelha do que está por vir na cidade.
Após sua transformação em Coringa e os atos que anunciam ao mundo a sua chegada, Gotham é banhada por cores quentes e vibrantes que anunciam o despertar de algo novo e transformador para todos.
As motivações do Coringa
Enquanto o Coringa de Dark Knight é uma força da natureza, sem origem definida, e totalmente consciente de suas atitudes, retratado em seu momento de triunfo comandando a viatura da polícia e admirando o anoitecer caótico que tomará conta de Gotham, o Coringa de Philips é antes de tudo um vitimista vingativo cujo único propósito é mostrar à cidade aquilo que ela própria criou. E após executar seu plano, adentra a mesma noite sem grandes pretensões, se deixando levar pela polícia, admirando pela janela o resultado de suas ações, e por isso segue passivo no banco da viatura, já que não planejou o que virá a seguir.
Como nascem os heróis
O que o Coringa causa em Gotham é uma ruptura da lei e da ordem sem precedentes, e aqueles que o apóiam o carregam nos braços como um herói. Ao recuperar a consciência após um choque físico e mental, ele finalmente encerra sua conversão e sua apresentação inicial, e agora que descobriu seu verdadeiro papel na sociedade, pode se orgulhar pela plateia que ele finalmente conquistou.
Impecável artisticamente, porém simplista ao imaginar a criação de um dos maiores sociopatas da literatura vítima da sociedade, Todd Philips deixa pelo menos a importante mensagem de que todas as revoluções tem sua nascente na loucura, e justamente por isso, capazes de liderar os ressentidos a cometerem as maiores atrocidades, seja a morte de milhões, seja a execução à queima roupa de um casal, na frente do seu filho.
Mais uma vez o Coringa surge para assombrar as plateias nos cinemas, dessa vez não por sua sua violência física ou psicológica, mas pela ideia de que uma sociedade cansada e quebrada pode ver lógica em suas ações.