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O socialismo assassinou meu pai

O experimento coletivista fracassado na Venezuela trouxe morte e desespero a um país outrora próspero.

Editoria Conserva Botequim
Conservadorismo de Botequim
11 min readFeb 4, 2020

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(uma livre tradução do artigo “Socialism killed my father”, de José Cordeiro para a Reason Magazine)

Eu trabalhava no Silicon Valley quando minha mãe me telefonou de casa em Caracas com notícias alarmantes: meu pai havia sofrido um episódio súbito de falência renal. Voei imediatamente de San Francisco para Miami, onde tive que esperar dois dias até conseguir um dos poucos vôos disponíveis para Caracas. Desde que eleição de Hugo Chávez em 1998 inaugurou uma era de sucessivas ondas de nacionalização, inflação e recessão, as empresas aéreas internacionais — American, Delta, United Airlines, e mesmo companhias de países vizinhos como Colômbia e Brasil — estavam regularmente reduzindo, cancelando e eventualmente abandonando todas as rotas para o meu outrora próspero país natal. Dormi no Aeroporto Internacional de Miami juntamente com muitos outros venezuelanos desesperados. Finalmente fui capaz de comprar uma passagem (por uma soma exorbitante) da Santa Barbara Airlines, uma companhia aérea venezuelana que mais tarde veio a falir.

Felizmente, meu pai ainda estava vivo quando cheguei a Caracas, mas em um estado que requeria hemodiálise contínua. Mesmo nas melhores clínicas privadas remanescentes, havia uma escassez crônica de suprimentos e equipamentos básicos. Os dialisadores tinham que ser constantemente reutilizados, e não havia medicamentos suficientes para os pacientes. Em muitas partes do país, eletricidade e água também eram racionadas, inclusive em hospitais. Dada a situação econômica precária, e graças a nossa situação financeira comparativamente vantajosa, nós decidimos que a melhor opção seria sair da Venezuela e partir para Madrid, terra natal de meu pai, onde poderíamos conseguir o tratamento que ele precisava.

Porém, devido à dizimação do setor aéreo, tivemos que esperar três semanas pelo próximo vôo disponível para a Espanha. As poucas companhias aéreas que ainda estavam operando na Venezuela tinham reduzido dramaticamente seus vôos por conta das regulações do governo. Infelizmente, a hemodiálise em Caracas não conseguiu suportar por tanto tempo. Apenas dois dias antes da data marcada para deixar seu país adotivo, meu pai faleceu por conta das políticas desastrosas daquele país. Ainda lembro vividamente. Não dá pra esquecer.

Isso aconteceu em 26 de agosto de 2013, poucos meses depois de Nicolás Maduro assumir o controle do país logo após a morte de Hugo Chávez. As coisas pioraram muito desde então. Eu não consigo imaginar como os hospitais ainda tentam funcionar na capital mundial do assassinato sem remédios, sem eletricidade, e às vezes até mesmo sem água, enquanto médicos aptos fogem do país na primeira oportunidade disponível. A história da minha família é de enfurecer e cortar o coração, mas pense nos milhões de venezuelanos em situação financeira muito mais apertada, que encaram a terrível escolha entre apodrecer em seu país natal ou encarar uma jornada perigosa para qualquer país vizinho que os aceite.

O número crescente de pessoas no Ocidente que dizem preferir o socialismo — ou até, Deus nos ajude, as suas perniciosas variantes Cubana e Venezuelana que podem ser mais propriamente conhecidas como comunismo — frequentemente citam a garantia de saúde pública universal em sua defesa do coletivismo. Esse é o motivo pelo qual é tão importante para mim contar a história de meu pai. Uma nação inteira está sendo comida por dentro porque algumas pessoas se recusam a aceitar que uma das idéias políticas mais mortíferas da história só produziu cadáveres em qualquer lugar onde tenha sido tentada.

Da Espanha à Venezuela

Os meus pais nasceram na Espanha na década de 1930; meu pai galego-asturiano em Madri e minha mãe em uma pequena vila na Segóvia. Eles eram crianças pequenas durante a horripilante Guerra Civil Espanhola de 1936 a 1939, quando de acordo com alguns estudiosos do período, cerca de 2 milhões de pessoas, cerca de 1/10 da população do país, morreram na luta entre os republicanos esquerdistas/comunistas/anarquistas e os nacionalistas católicos/conservadores/monarquistas/falangistas.

O General Francisco Franco, um simpatizante e colaborador da Alemanha nacional-sociaista e da Itália fascista, emergiu vitorioso do banho de sangue, e a Espanha do pós-II Guerra Mundial se encontrou cada vez mais isolada e miserável. Franco aprisionava e executava muitas pessoas que tinham dado apoio aos Republicanos; de fato, meu avô em Segóvia foi preso e quase morto por ter tido contato com alguns apoiadores do comunismo.

Meus pais se conheceram em Madri no final dos anos 40. Por volta do fim da década de 50 eles decidiram emigrar. Naquela época, a Venezuela era um país comparativamente próspero, uma nação que recebia alegremente milhões de imigrantes do sul da Europa ( majoritariamente da Espanha, Itália e Portugal) e da América do Sul ( majoritariamente da Colômbia, Equador e Peru). E isso foi uma constante desde essa época até o início dos anos 90.

Uma Venezuela próspera nas décadas de 60 e 70.

Durante minha infância nos anos 60 e 70, a Venezuela desfrutou de um extraordinário crescimento econômico — frequentemente acima de 10% ao ano. Era uma terra de oportunidade, com um mercado relativamente livre, inflação baixa, pequena dívida externa e algo muito próximo do pleno emprego. A moeda local, o bolívar, era considerada uma das mais fortes e estáveis do mundo. Ela chegou até mesmo a ser reavaliada face ao dólar americano na década de 1930, aumentando seu valor internacional. Na minha infâncias, as crianças costumavam dizer que nossa capital Caracas era “a capital do Céu”.

Com uma receita de petróleo crescente, a Venezuela se tornou o país mais rico da América Latina, ultrapassando as outrora prósperas Argentina e Cuba. Ali por meados dos anos 70, o PIB bruto do país estava muito próximo do nível do estado do Texas, que possuía reservas de petróleo e população de tamanho comparáveis aos da Venezuela. Alguns especialistas chegavam a prever que a economia venezuelana iria eclipsar a do Estado da Estrela Solitária quando chegasse a década de 80.

Isso, é claro, foi antes que o governo socialista de Carlos Andrés Pérez começasse a nacionalizar a economia no final da década de 70. Todas as companhias de petróleo estrangeiras (Shell, Mobil, Exxon, etc.), assim como os produtores venezuelanos de pequeno porte, foram surpreendidos pelo governo em 1976, sob um conglomerado único chamado PDVSA. Pérez também nacionalizou a indústria de telecomunicações, o setor de mineração, e até mesmo o banco central, que era parcialmente pertencente a várias instituições financeiras privadas. O PIB do país chegou a um pico máximo em 1978 devido a altas históricas anteriores do petróleo no mercado mundial, e então entrou em um longo e estável declínio de duas décadas, que preparou o cenário para algo ainda pior.

Livro Negro, Terror Vermelho

Eu ainda me lembro vividamente de quando li pela primeira vez O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror e Repressão. Foi há 20 anos atrás. Naquela época, eu já havia estudado nos EUA, França e Japão; desenvolvido interesses em produção de petróleo, políticas monetárias e futurismo; e testemunhara o fracasso em câmera-lenta do socialismo em meu próprio país. Ainda assim, nada disso havia me preparado para o choque das verdades d’O Livro Negro, que descrevia de maneira cara como o comunismo havia falhado, assassinando milhões de pessoas, em qualquer lugar onde tenha sido tentado.

O best seller internacional foi publicado na França em 1997 por um grupo de acadêmicos europeus, e então traduzido para o espanhol no ano seguinte e para o inglês um ano depois. A obra peneirou através dos escombros tanto do comunismo soviético quanto do maoísmo chinês e encontrou uma assombrosa contagem de corpos em qualquer lugar onde o governo tomou posse dos meios de produção. Os regimes comunistas, argumentou de maneira célebre o livro, foram responsáveis por mais mortes que o fascismo, o nazismo ou qualquer outro sistema político no século XX. Aproximadamente 100 milhões de pessoas pereceram devido ao comunismo em todo o mundo. 65 milhões na República Popular da China, 20 milhões na antiga União Soviética, 2 milhões no Camboja, 2 milhões na Coréia do Norte, 1 milhão e 700 mil na Etiópia, 1 milhão e meio no Afeganistão, 1 milhão no Vietnã e muitos milhões mais em vários “experimentos” pela Europa Oriental, América Latina, África e Ásia.

O número correto de pessoas mortas sob os regimes comunistas nunca será verdadeiramente conhecido, pois seus governos totalitários ativamente manipulam, escondem e controlam os dados oficiais. Mas os custos foram tão evidentemente brutais que uma nova terminologia era necessária para descrever seu terror. Por exemplo, o cientista político R. J. Rummel, em seu livro Power Kills de 1997 criou o termo democídio para indicar especificamente o assassinato sistemático de cidadãos pelo próprio governo, como ocorreu nos Expurgos Stalinistas ou na Revolução Cultural de Mao.

No ano de 2008, eu fui visitar o lugar de um dos mais terríveis democídios da história moderna: o assassinato de aproximadamente 2 milhões de cidadãos Cambojanos (aproximadamente um quarto da população do país) pelo ditador Pol Pot entre os anos de 1975–79. O Museu Tuol Sleng do Genocídio em Phnom Pehn, localizado em uma antiga escola secundária que o perverso regime do Khmer Vermelho de Pol Pot transformou em um campo de extermínio, é uma experiência assustadoramente inesquecível, com pilhas sobre pilhas de crânios humanos provenientes dos infames “campos da morte”, do (abjetamente) mal-nomeado “Estado Democrático de Kampuchea”.

No Museu Memorial dos Mártires do “Terror Vermelho” em Adis Abeba em 2016, eu pude ver exibições semelhantes de esqueletos, roupas ensanguentadas, e fotografias de algumas das centenas de milhares de pessoas massacradas pelo governo da Etiópia em 1976–77. “Estamos fazendo o que Lênin fez”, o então no governo Movimento Derg se gabava na época, a respeito de seus pogroms contra outros grupos marxistas-leninistas no país. “Você não pode construir o socialismo sem o Terror Vermelho”.

Mesmo antes a abertura desses museus, você poderia testemunhar alguns desses estados totalitários por você mesmo, como eu fiz na década de 80 na Alemanha Oriental e na Birmânia, e também nos enclaves stalinistas de Cuba e Coréia do Norte nos anos 2010. A impressão geral é avassaladora, assim como a convicção resultante: Eu não posso esperar para ver a queda desses regimes comunistas criminosos, e anseio pelo dia em que nós não teremos mais que construir nem mesmo museus para lembrar das atrocidades que eles infligiram sobre a humanidade.

A contagem de corpos do Chavismo

© Sarah Hanson

E mesmo assim, enquanto o mundo estava acordando tardiamente para os males da coletivização e centralização, meu próprio país socialista estava dormindo sob a canção de ninar de seus supostos encantos. A ideologia pode ter mudado de nome — Chavismo — mas os meios eram os mesmos. Assim como os resultados mortíferos.

No ano de 1992, Hugo Chávez, um líder militar, foi preso após um golpe de estado fracassado no qual suas forças assassinaram vários civis e soldados. Mesmo em se tratando de um criminoso condenado que tentou derrubar um governo democrático, Chávez foi perdoado e lhe foi permitido entrar para a política, onde ele engendrou um golpe de dentro do próprio sistema. O antigo líder golpista se utilizou das últimas eleições livres e transparentes na Venezuela para subir ao poder em dezembro de 1998, vendendo a si mesmo como um “democrata”. Ele logo revelou-se um devoto de Marx, Lênin e Mao.

Chávez chamou a sua ideologia pessoal de “Bolivarianismo”, distorcendo o uso do nome do libertador anti-imperialista latino-americano do século XIX Simón Bolívar. Mais tarde, Chávez renomeou seu coletivismo como “o Socialismo do Século XXI”, um importante qualificador, dado que quase todos os modelos do século XX já tinham implodido àquela altura. O jornalista argentino-americano Andrés Oppenheimer chamava Chávez de um ditador “narcisista-Leninista”, e a descrição encaixa perfeitamente.

As políticas agressivas implementadas por Chávez levaram a Venezuela de um escorregão socialista para um mergulho comunista. Tal queda só fez acelerar após sua morte, anunciada após meses de segredos a respeito de tratamentos de câncer na Cuba comunista, e após a apressada e fraudulenta eleição de seu sucessor designado, Maduro. O novo presidente, um ex-motorista de ônibus admirador da revolução Cubana, agora está dirigindo a sociedade para um colapso total.

Historiadores da economia dizem que o que a Venezuela está experimentando atualmente é a pior crise em um país não envolvido em uma guerra desde a época da II Guerra Mundial. Os EUA durante a Grande Depressão, o Zimbábue durante o surto de hiperinflação de 2008–09, a Rússia e Cuba no rescaldo imediato da queda da União Soviética — nada chegou perto. Há uma escalada na fome, nas doenças, na criminalidade e na mortalidade. O PIB do país em 2019 foi encolhido a níveis da década de 50. E ainda tem a inflação. Desde a eleição de Chávez em 1998, o governo já removeu oito zeros da moeda constantemente inflacionada e mudou duas vezes seu nome. É projetado que em 2020 haverá ainda outra moeda com ainda mais zeros cortados — com a unidade da nova moeda equivalendo a centenas de bilhões de velhos bolívares desde que o chavismo começou. O FMI indicou que a inflação poderia estar entre 1 milhão e 10 milhões por cento ali pelo final de 2019, mas é difícil de se saber com certeza, já que o governo parou de se importar em divulgar a maioria dos indicadores econômicos básicos.

A Venezuela atualmente possui o menor salário mínimo médio do mundo: apenas dois dólares por mês, um décimo do valor da empobrecida Cuba. Há escassez generalizada de praticamente tudo, incluindo gasolina, a despeito do fato de que a Venezuela possui algumas das maiores reservas de petróleo do mundo. Os sistemas de abastecimento de água e elétrico estão entrando em colapso: apagões em escala nacional começaram a acontecer no começo de 2019, com algumas partes do país ficando sem luz por semanas. Serviços de telefonia e internet falham constantemente, devido às falhas elétricas e à falta de atualizações dos sistemas. A maioria dos pacientes que precisam de tratamentos de câncer ou hemodiálises estão apenas morrendo. Nossa antiga “capital do Céu”, agora não tem gás, nem luz, nem comida, nem água, nem empregos, nem dinheiro, nem remédios e nem esperança.

Não é de se espantar que o povo esteja fugindo. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados estima que mais de 4,3 milhões de pessoas, ou em torno de 14% da população, já fugiu da Venezuela. E o total pode passar de 5 milhões ao fim de 2020. Esse tipo de crise massiva de refugiados é a primeira nas Américas, e está criando sérios problemas regionais. O número de assassinatos cresceu de uma taxa de 5.000 por ano antes de Chávez para cerca de 25.000 atualmente, embora o governo tenha parado de divulgar esses dados, também. É algo como meio milhão de assassinatos — uma cidade inteira de mortos— desde o advento do chavismo.

Em meio à ilegalidade, privação e ao isolamento internacional, a Venezuela abriu suas portas não para europeus ocidentais procurando uma vida melhor, mas para terroristas. Das guerrilhas FARC colombianas a grupos jihadistas do Oriente Médio. Maduro vem abertamente apoiando os regimes repressivos do Irã e da Síria e recentemente abriu uma embaixada em Pyongyang. Portanto, a Venezuela voluntariamente se juntou ao que foi certa vez chamado de “O Eixo do Mal”.

Eu não posso mais retornar a Caracas. Meu passaporte venezuelano expirou, e o governo chavista recusou-se a renová-lo. Eu não posso usar meu passaporte espanhol para ir até lá também, já que uma lei anacrônica requer que venezuelanos natos entrem e saiam do país apenas com um passaporte venezuelano válido. Imagino quantas dezenas e centenas de milhares ainda irão morrer desnecessariamente antes que eu possa visitar livremente o país onde nasci.

O socialismo mata na Venezuela, como em qualquer lugar onde tenha sido implementado. Ele mata independentemente das características locais ou qualquer que seja a marca que cada ditador individual empregue. Está além da razão que esta ideologia, que levou à morte de mais pessoas que qualquer outra durante a História moderna, que foi meticulosa e tragicamente desacreditada no século XX, ainda esteja acumulando uma contagem de corpos na segunda década do século XXI. Que nós possamos finalmente aprender essa trágica lição.

Descanse em paz: Pedro Cordeiro Castillo.

© Arquivo Pessoal José Cordeiro

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