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Um Monolito, um Enviado e o povo de Deus entram num bar...

Editoria Conserva Botequim
Conservadorismo de Botequim
8 min readSep 27, 2021

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Tive um insight sobre um aspecto do imaginário coletivo brasileiro, motivado por acontecimentos recentes. Talvez seja algo que pode ajudar a entender um pouco o zeitgeist da direita brasileira no pós-7/9/2021 . Então, se você quer dar uma viajadinha básica, senta que lá vem história. Vem comigo.

Não reza um argumento bastante repetido pelo senso comum que “países só alcançam certo avanço depois de sofrer-se muito, derramar-se muito sangue, passar-se por guerras, experiências traumáticas e redefinidoras, etc.”? Pois então. Possível que isso não se trate de uma regra universal e imutável — até porque cabe aí aquela história da exceção à regra — ; porém, ao mesmo tempo faz muito sentido que seja exatamente assim como é, apenas necessário um pequeno detalhe, uma pequena mudança na lente ao se observar o assunto.

Exemplar da espécie “Rito de Passagem de uma Nação”.

Talvez o elemento necessário pra a tal evolução de uma nação não seja a guerra ou o sangue em si, mas os “ritos de passagem” que essas dores de crescimento representam. Esses ritos de passagem, eles sim seriam o elemento básico, a condição necessária que leva uma nação a iniciar seu processo de mudança. Para um país pode ser uma sangrenta guerra civil; para outro, uma derrota em casa por 7 a 1 para a Alemanha em uma Copa do Mundo já cumpriria o papel do rito. Varia de caso a caso. Assim para as nações, como para os indivíduos.

Outro exemplar da espécie “Rito de Passagem de uma Nação”.

No caso do Brasil, há a mística por trás da eterna espera por uma “virada de mesa”, pela volta de um Dom Sebastião, bravo, justiceiro, vingador. Uma herança clara de nossa paternidade lusa. Uma característica marcante no imaginário nacional. Mas se engana quem pensa que a coisa é simples assim e para por aí. Quatro séculos e meio é uma medida de tempo suficiente para que se fermentem e decantem certas características bem peculiares a formarem o nosso “sebastianismo do século XXI, envelhecido em barril de umburana”. Não é só a questão de “o cara” voltar, ou ressurgir do nada. É algo um pouco mais folclórico. A espera do brasileiro pela virada de mesa em si é tão importante nesse jogo quanto o “Avatar de Sebastião” que virá para corrigir o que há de ser corrigido. Deseja-se sempre pelo fogo purificador, manejado por um héroi audacioso. Espera-se também pela martirização do inimigo. Conta-se com o ritual de malhar o Judas, o torturar de quem até ontem nos torturava. O brasileiro anseia pelo vilão eviscerado, como paga pelo mal praticado. Esse é o ponto focal da questão.

D. Sebastião em momento “me deixa aqui na alegoria, que mané voltar o que!”

Nesse desejo tão presente em nosso imaginário mora a razão do brasileiro ter uma certa paixão pelo ingrediente revolucionário, o que segundo Nelson Rodrigues, facilitaria o amplo contágio por marxismo pelas vias aéreas. O que o célebre jornalista e escritor não chegou a falar no entanto, é que mesmo com tanta predisposição a um revolucionarismo festivo, o organismo do brasileiro manifesta naturalmente uma aversão profunda pelo rigor formulaico e pretenso-científico da tradição marxista. O brasileiro quer a tecnologia de “botar o pau pra quebrar”, mas não quer fazer curso pra tirar a habilitação nessa máquina. Sendo assim, mesmo que os esquerdistas briguem muito contra essa tendência, o natural do brasileiro é querer a posse dessa tecnologia para atender muito mais os SEUS objetivos, e muito menos os de Marx. Essa ânsia pela virada de mesa (violenta e autojustificada) se mistura com o arraigado sebastianismo original (que sozinho, exigiria um alto índice de virtudes como condição para seus avatares), fazendo com que a bestialidade do primeiro elemento dilua bastante as exigências morais do segundo. Daí o sucesso de “caçadores de marajás”. Do “cara que mata a cobra e mostra o pau”. Do “cara brabo”. Do “juiz super herói”. “do exterminador de corrupto”, “Do cara que fala mesmo e foda-se”, mesmo que todos esses exemplos acabem se provando depois de um tempo farinha do mesmo saco daqueles que antes combatiam. Mas ainda assim, isso não impede que o povo os abrace. A disposição de “botar pra quebrar” é entendida pelo povo (mesmo quando fingida) como algo indispensável para que a nação avance ao tão esperado futuro prometido ao qual o país supostamente pertenceria.

Exemplar da espécie “Caçador de Marajás”, (em fase pré-desmascaramento).

A coisa toda funciona como se o brasileiro tivesse o conhecimento atávico de que esse cara não é “O Escolhido” pra fazer necessariamente tudo sozinho, mas sim por ele ser um elemento catalisador, necessário pra liderar a mudança. Nego até tem fé, mas precisa da figura do Moisés pra fazer o Mar Vermelho se abrir, e daí sim atravessar, participar do milagre, e praticar a fé com gosto. Daí vem a facilidade de aceitação de vários “escolhidos”, mesmo após decepção em cima de decepção com candidatos que se provaram fraudadores de seu próprio papel em algum momento da trajetória. Há que se destacar e lembrar aqui que há tempos, qualquer político genérico BR sabe como ninguém interpretar esse papel do “escolhido que bota pra quebrar” pra se vender ao populacho. O outro ponto focal da análise acontece exatamente aí. Esse político se divide em duas categorias: a primeira, que é a dos que sabem ser só teatro, e que por mais que interpretem bem o papel, não quebrando o kayfabe, movimentam-se de acordo a lucrar sempre com seu papel, enquanto ele dura. Já a segunda categoria é a dos que realmente encarnam o papel. Os que entram no personagem (por autoengano ou por fé) e se seduzem pela chance de ser o Chosen One pra valer. São os que em algum momento se convencem sinceramente de que “de repente dá, hein?” E partem na cruzada em níveis variáveis de emulação de um Dom Quixote, na clássica alucinação dos moinhos de vento. A diferença básica da história de Cervantes para a nossa realidade é a de que moinhos (disfarçados de gigantes ou não) seriam infinitamente mais fáceis de vencer que um monolito de pedra — como aquele que aparece no 2001 de Kubrick.

Exemplares da espécie “Brasileiro” lutando (pateticamente, sem tática ou estratégia, em vão) contra O Establishment (interpretado no filme pelo ator Monolito Negro).

É justo aí que surge o monolito negro do Establishment, cuja missão permanente é impedir a nação de mudar pra melhor ou evoluir, simplesmente porque “tá bom pra eles”, “deixa como tá”, etc. Toda a intensidade da ânsia do imaginário coletivo brasileiro por vingança violenta, por justiçamento sangrento, por uma malhação de judas espiritual, não passa da supressão do potencial de evolução que o Establishment monolítico quatrocentão impôs ao povinho, e esse foi sofrendo na ignorância. Daí esse processo só ser sentido pela fé. Demorou séculos, mais décadas até que se chegasse a um ponto em que um pouco mais de gente começasse (só começasse) o movimento de procurar desligar de uma Rede Globo da vida e ter condições de entender um pouco (um pouco só) melhor o que estava acontecendo, fora da esfera apenas da fé ou da (válida) mera intuição.

O real inimigo, monolítico, silencioso e presente em todas as instâncias, é sábio em se fazer perene. Quando um aspirante mais animado a Moisés aparece querendo viver o que era pra ser só personagem, rapidamente o Establishment ameaça um parente, expõe um escândalo, derruba um avião, ou causa um acidente de carro em circunstâncias misteriosas. O maior trunfo do monolito negro é sua discrição e habilidade em nunca aparecer demais. Diferente do “escolhido”, que sempre é visível e procura aparecer com seu caráter inspirador aos olhos do povo, o Establishment sabe que quanto mais escuro o ambiente, mais poderosas e profundas as raízes que pode lançar ali. Ocorre que um dos recursos mais eficientes do Establishment é ele buscar sempre trazer os “escolhidos” pra dentro de sua estrutura. Os da primeira categoria, aqueles que só interpretam o papel no teatro, já fazem parte, são cria dele. Esses não contam. Os que ele tenta cooptar são os que crêem que podem ser o Ultimate Escolhido, “O Cara” dentre os “Caras”. O Establishment procura convencer o pretenso escolhido de que sua luta é inútil, de que eles são invencíveis, em última análise, o velho discurso que começa com o “passa pro lado de cá que você vai se dar bem” e termina no “join us or die”. E funciona quase sempre. Quando não, bem… Nada que uma ameaça de parente próximo morto, ou em último caso um avião bem sabotadinho não possam resolver. Uma tragédia terrível, que tristeza, não? Join us or die, motherfucker!

Exemplar de “Trágica Fatalidade” que o Establishment aprendeu (em séculos de experiência) a fabricar imitações perfeitas, indistinguíveis das originais, em casa.

No fim, mora no meio desse teatro a dor do brasileiro: A vontade de justiça represada por séculos a ponto de se tornar uma sede de sangue difusa e estranha, cada vez mais intuitiva e inconsciente. Um vilão etéreo, que não se personifica de modo sólido o suficiente para que se possa combatê-lo de forma eficiente, e um herói de muitas faces — embora todas bastante semelhantes entre si — que sempre “morre” (das mais variadas formas) antes do fim da sua missão, que é a de liderar a travessia que tornará aquela pobre e humilhada nação MELHOR. O caminho para a Terra Prometida é sempre impedido, às vezes por uma vaidade desmedida, outras por uma ambição faminta, diversas por fraqueza de propósitos, algumas por covardia, ou ainda por preguiça ou até por uma comezinha burrice por parte do “herói”. Os seus erros, sua traição do ideal inicial, suas costas dadas a Deus através do abraço no demônio do Establishment, são o que contribui para manter seu povo sempre incapaz de crescer, pois torna-os prisioneiros de uma descrença atrofiante e de um fatalismo cruel. Enquanto isso, ao se tocar na superfície polida e gélida do monolito negro, pode-se ouvir o ignóbil riso de deboche do demônio ecoando nos bastidores.

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Livre, plural, suprapartidário. Alternativa de pensamento à hegemonia esquerdista em Niterói, Rio, Brasil. Liberal, conservador. Menos Marx, Mais Mises!