Gabriel Estácio
Construção
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6 min readAug 18, 2021

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39: NÔMADES

Esse não é um texto fácil. Desde que Deus abriu meus olhos pra isso, eu fujo um pouco de compartilhar sobre o assunto, porque ele é sensível e pode gerar impactos sérios no caso de interpretações erradas. Então, desde já, te peço que entenda que a situação que descrita aqui não é universal. Não são todos que vivem nesse contexto, até porque se fosse, Paulo estaria mentindo quando disse que “Deus não permitirá que vocês sejam tentados além do que podem suportar”.

“Do que você tá falando, Gabriel?”, você pode estar se perguntando. Há pouco mais de um ano e meio, ouvi um pregador falar que “o deserto é passageiro. Se mantenha firme que tudo isso vai passar”. E na mesma hora minha cabeça soltou um “quem garante?”. Eu nunca tinha pensado diferente do que essa ideia que o pregador havia dito, então esse questionamento foi novidade pra mim. Deus, então, me lembrou de vários homens da Bíblia que viveram uma vida de aparente sofrimento. Homens como Elias, João Batista ou Pedro, que viveram vagando por desertos intermináveis.

Na lógica matemática, quando você quer provar uma proposição, existem alguns métodos. Um deles é o contra-exemplo. De forma simples (e não-matemática), eu digo pra você que “todas as casas da minha rua são azuis”. Eu preciso provar isso. Então você vem aqui na rua e encontra uma casa vermelha. Essa casa é um contra-exemplo, ela é algo que refuta minha afirmação, ou seja, minha afirmação é falsa porque você encontrou algo que faz dela uma mentira.

Ok, isso não é aula de argumentação… Mas eu lembrei disso naquele momento. Se eu lembro de homens que, ao invés de cruzar por um deserto passageiro, tiveram que fazer morada nesses lugares de angústia, então, ao contrário do que ouvimos comumente, nem toda dificuldade vai passar. Nem todo vale tem uma subida no final, nem todo deserto encontra um campo verdinho com água corrente. Nem todos estão presos dentro de um deserto sem saber pra onde ir. Alguns conhecem seus desertos de ponta a ponta. O problema é que simplesmente não tem saída.

Eu sei que isso parece loucura. Parece que eu estou falando alguma insanidade depressiva. Qual seria o interesse de Deus em fazer alguém passar por isso? A grande questão não é o “porquê”, mas o “como”. Todos os personagens que passaram por isso e todas as pessoas que vivem esse estado tem algumas coisas em comum: 1) são separadas para isso; e 2) são felizes apesar disso.

Como eu disse lá no começo, não é todo mundo que vai viver assim, e se você estiver passando por um deserto, não há mal nenhum em você pedir para que Deus o tire desse lugar. Citando mais uma vez 1 Co. 10:13, Deus não permite tentações insuportáveis.

As pessoas que são separadas para isso são pessoas para as quais Deus tem um chamado muito específico. Atualmente, podemos citar como exemplo os missionários transculturais, que vivem o resto da sua vida muitas vezes em contextos completamente perturbadores, mas entendem que foi para isso que foram separadas.

Biblicamente, a maioria das pessoas que vivia nesse contexto era profeta. Mas não um profeta qualquer, como muitas vezes vemos na Bíblia, que diziam o que as pessoas queriam ouvir. Estes sempre eram muito queridos e viviam cheios de regalias, apesar da falta de credibilidade. Os que eu falo eram aqueles que diziam exatamente o que o Senhor queria. Estes eram perseguidos e rejeitados continuamente, simplesmente por serem canais de Deus para seu povo.

Muitos de nós queremos viver os bônus da vida de profeta, ter a coragem e autoridade que eles tinham, sem lidar com os ônus que tal coisa causa. É fácil querer ser conhecido como alguém que tem o dom da profecia, mas há disposição para viver uma vida de fugas como a de Elias, por exemplo? Uma vida de desafios?

Ainda assim, apesar da vida no meio do deserto, esses homens eram felizes. O foco deles não eram nem os ônus, nem os bônus que essa vida dura poderia gerar. O importante era a consciência que o prêmio era outro. Somente a confiança em tal fato faria um homem como Paulo dizer o seguinte:

“Alegramo-nos no que Cristo Jesus fez por nós. Não colocamos nenhuma confiança nos esforços humanos, ainda que, se outros pensam ter motivos para confiar nos próprios esforços, eu teria ainda mais! Fui circuncidado com oito dias de vida. Sou israelita de nascimento, da tribo de Benjamim, um verdadeiro hebreu. Era membro dos fariseus, extremamente obediente à lei judaica. Era tão zeloso que persegui a igreja. E, quanto à justiça, cumpria a lei com todo rigor.
Pensava que essas coisas eram valiosas, mas agora as considero insignificantes por causa de Cristo. Sim, todas as outras coisas são insignificantes comparadas ao ganho inestimável de conhecer a Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele, deixei de lado todas as coisas e as considero menos que lixo, a fim de poder ganhar a Cristo e nele ser encontrado.”

[Filipenses 3:3–9]

Fosse a morada destes homens no topo dos montes, ou no fundo de um vale, toda a alegria e satisfação estava baseada apenas no Senhor e em seus propósitos. É o que o salmista diz no salmo 23:

“Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.”

[Salmos 23:4]

Esse é o nível de confiança que devemos buscar. Mesmo que andar pelo vale da sombra da morte seja uma jornada interminável, não vou temer, porque minha recompensa é o Senhor! O contexto ao redor pode ser desesperador, a dificuldade pode parecer eterna, mas mesmo enfiado dentro de um deserto, eu tenho um Deus que é meu refúgio.

Um Deus que nem sempre vai transformar o deserto em oásis, mas que vai me capacitar pra não ser só mais um desesperado no meio de um lugar inóspito, mas alguém que, assim como os nômades do Saara, faz do deserto o seu lar e ali, dentro de um contexto tão adverso, vivem em paz.

Isso tudo me lembra da história dos dois jovens moravianos. Eles faziam parte de um movimento de oração contínua que durou quase 100 anos, 24 horas por dia, todo dia, sem parar de orar por um segundo (não preciso dizer que eles revezavam, né? 😜), que começou na Alemanha no século XVIII. Esse movimento tinha o costume de orar apenas por aquilo que eles mesmos poderiam ser a resposta.

Esses dois jovens tinham apenas 20 anos de idade quando ouviram falar de uma ilha indiana que pertencia a um britânico ateu. Nessa ilha, haviam mais de dois mil africanos escravizados que iriam morrer sem ouvir falar de Jesus. Os jovens, então, entraram em contato com o britânico e pediram para irem para lá como missionários. A resposta foi negativa: “Nenhum pregador e nenhum clérico chegaria a essa ilha para falar sobre essa coisa sem sentido”.

Diante disso, eles voltaram a orar e fizeram uma segunda proposta ao ateu dono da ilha: “E se fossemos a sua ilha como seus escravos para sempre?”, o homem disse que aceitaria, mas não pagaria nem mesmo o transporte deles. Então os jovens usaram o valor de sua própria venda para pagar os custos da sua “jornada para a morte”.

No dia que estavam se despedindo do grupo de oração e de suas famílias, o choro de todos era intenso, pois sabiam que nunca mais se veriam novamente. Quando o navio tomou certa distância eles dois se abraçaram e gritaram suas últimas palavras que foram ouvidas:

“Que o Cordeiro que foi imolado receba a recompensa do seu sofrimento!”

É esse o nível de devoção que devemos buscar! Onde o contexto não importe, onde as circunstâncias sejam irrelevantes. Que confiemos que, apesar das dificuldades que possamos viver nessa vida, nossa recompensa é o Senhor e que minha vida nada mais é que o fruto do seu sacrifício! Mesmo que meus pés criem raízes no vale da sombra da morte, e nem olhar pra frente faça sentido, que eu mantenha os olhos fixos no céu, de onde vem o meu consolo.

Gabriel Estácio, 18 de agosto de 2021.

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