A distopia nossa de cada dia

Glauber Cruz
Construtor
Published in
3 min readMar 15, 2018
Marielle Franco

Nove tiros. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove.

Nove tiros e duas existências que se vão, que se esvaem. Duas vidas mortas. Cenas de uma distopia, a pior das distopias, aquela que é real. Rotineira, corriqueira, banal. A distopia nossa de cada dia. A realidade nossa de cada dia.

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove.

O Brasil não é um roteiro simples. Portanto, a nossa distopia não é uma ameaça zumbi, ou uma epidemia global ou uma invasão alienígena. A nossa distopia é uma guerra violenta e silenciosa que se desdobra longe dos olhos da grande maioria da população. Seja porque de fato está longe, realocada nas zonas periféricas fora do alcance do olhar dos centros urbanos, seja porque as pessoas realmente não querem enxergar. Na distopia tupiniquim, o sangue rola à solta, como num Tarantino. Mas na nossa distopia não é a cara do Hitler que é esfacelada, não é o peito de um fazendeiro racista que é perfurado. Não, não são os poderosos. É o rosto, e o peito e a alma daqueles que sempre foram esfacelados e perfurados e açoitados que são atingidos. Na distopia nossa de cada dia, os corpos negros e pobres, as vozes que gritam e não se deixam silenciar, lutam contra ameaças que são muito mais próximas que alienígenas, muito mais aterrorizantes que um zumbi.

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove.

O que aconteceu com esse país? Onde viemos parar?

Como assim, o que aconteceu? Aconteceu o de sempre. E quem disse que saímos de um lugar para chegar aqui, na nossa distopia rotineira? Ora, estamos aqui, no mesmo lugar de sempre, cravados em uma distopia que mata quem fala, que mata quem se posiciona, que mata quem luta, que mata quem é pobre, que mata quem é preto.

Shhhhhhhhhhhh. Não fale alto, não fale nada!

Um dia desses ouvi um áudio no WhatsApp, dizendo para que as pessoas tomassem cuidado pois agora estamos vivendo um estado de exceção. Bem aventurados aqueles que em algum momento da vida tiveram o prazer de degustar um pleno estado de direito! Nas nossas vielas não existe estado de direito, apenas o estado distópico de sempre, que não é de exceção porque aquilo é o de sempre. Abençoados aqueles que não degustaram o gosto da morte do outro lado da rua durante a infância! Abençoados aqueles que não tiveram um amigo ou um pai ou uma mãe ou um irmão arrancados da vida pela violência daquele que é o inimigo. Que não é um alienígena, que não é um zumbi, que não é nada que extrapole os limites das fantasias que empalidecem inocentemente diante da dureza e da barbárie das distopias rotineiras.

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove.

Nove tiros arrancaram a vida de Marielle. Na distopia brasileira, negros e negras são pisoteados por um Estado cujas falanges do indicador coçam no gatilho sempre pronto para eliminar. Estado de exceção? Que nada. O estado de sempre, o extermínio de sempre. Nove tiros mataram Marielle, a mulher, a negra, a favelada, a filha, a mãe, a amiga, a socióloga, a feminista, a vereadora, porque ela ousou não se calar. Porque ela ousou lutar pelos direitos dos seus. Negros, mulheres, favelados, assassinados.

Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh não fala alto, não fala nada!

Ah mas eu falo. Falo alto e falo tudo!

E ela falou. Falou e gritou. Falou, gritou e agiu. Criticava a polícia, fiscalizava a intervenção militar no Rio e deixava bem claro que ela não é solução, que na verdade é desculpa pra milico matar gente pobre e preta da favela. Apontou o dedo para a cara desses monstros-gestores terrivelmente reais que desistiram do uso de qualquer maquiagem. Não se escondem mais os reitores, generais, deputados, policiais e presidentes. Meninos mimados que regem a nação numa distopia que estraçalha tudo o que está abaixo de seus pés calçados por coturnos de cano alto ou sapatos importados.

Ontem nos estraçalharam mais uma vez. Nove pedaços arrancados de dentro de nós. Quando morre um de nós, morremos todos, pouco a pouco. E no meio da dor, no meio de todo esse horror real, ficamos a nos perguntar a mesma pergunta que Marielle fez há alguns dias em uma rede social: quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?

Quantos?

Marielle, presente.

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