Carrinho de mão

Glauber Cruz
Construtor
Published in
3 min readMar 8, 2017
Arte de Marcelo Casarotto

Suba! Gritava um dos rapazes, apontando para o carrinho de mão. “Não vai subir não?” algum outro questiona, mas não há tempo de resposta. Outro rapaz vem por trás. Um chute nas costas. Potente. O ódio deixa tudo mais potente. Eles continuam. Apontam para o carro-de-mão. Não vai subir? Vamos fazer você subir.

Um deles pega o chinelo. Afinal, é um inseto. Não é uma vida. É só um inseto. É só um travesti. É só mais um deles. Vamos exterminá-los. Pode ser com o chinelo, é mais rápido. Pega o chinelo e gruda. Gruda uma, gruda duas vezes. Vai viado despeitado, sobe nessa buceta! Ela tenta, mas ela não tem forças. É só um inseto. Ela sangra. A sua carne sangra. Ferida. A sua vida sangra. Atacada. Atacada física e simbolicamente. Atacada ali, naquele momento de horror e ali, em toda a sua vida. Toda a sua existência.

A imundícia tá de calcinha e tudo! Porque ela usa calcinha? Ela não é gente. Ela é um inseto. Não é nada além do resto. O resto de algo que deu errado. A escória. A imundície. Chuta a sujeira. Chuta uma, chuta duas, chuta três vezes. Na cabeça, tem que acertar na cabeça. Talvez assim a sujeira se espalhe mais rápido.

Não adiantou, então tenta outra coisa, traz o pedaço de madeira. Gruda uma, gruda duas, gruda três vezes. Na cabeça! Na cabeça!

Chuta mais um pouco, não é o suficiente. Tem que doer mais, sempre mais, cada vez mais. Quem mandou existir. Quem mandou ser essa imundície que suja a vista alheia, que desrespeita a ordem. Quem mandou? Quem?

Chega! É pra botar ele aqui dentro. No carrinho de mão. No lugar do entulho, do resto. O transporte para o descarte, para o fim. É só sujeira. É só imundície. Não é nada. Joga no carrinho de mão e leva.

E levaram.

Agora imagine a sua vida ser tratada como entulho. Imagine ser tratado como um inseto. Imagine ser um alvo aos olhos daqueles que te veem, algo a ser exterminado. Imagine ser um alvo por simplesmente ser você. Imagine levar uma chinelada por falar do jeito que você fala. Imagine levar um chute por andar do jeito que você anda. Na cabeça. Um chute na cabeça. Imagine ver de encontro ao seu corpo, à sua existência, à sua vida, à sua integridade física e moral um pedaço de madeira mergulhado em ódio por simplesmente ser assim: você. Simplesmente por existir à sua maneira. Imagine e tente ter uma dimensão de toda essa dor, de todo esse horror.

Dandara foi vítima da intolerância, da ignorância, da falta de humanidade, do ódio e da crueldade humana no seu formato mais cru. Dandara foi vítima do país que mais mata travestis e transexuais no mundo. O país que mais vê vidas humanas como entulho, como resto, como imundície aos olhos alheios. O país frio e assassino que joga a vida de tantas Dandaras sobre carrinhos de mão dia após dia. Não são poucos os carrinhos de mão. O número é alto e equivalente ao número de discursos que legitimam ações como o assassinato de Dandara. Eles aparecem aos montes, cada vez mais e mais. Para aqueles que os conduzem, a quantidade de entulho no Brasil é muito grande. É preciso fazer uma limpeza. E eles fazem. Seja segurando um chinelo ou um pedaço de madeira, seja repetindo uma piadinha “inofensiva”. Eles fazem. Seguem fazendo.

Levaram Dandara. Levaram Dandara e junto dela, sobre aquele medonho carrinho de mão, levaram também tudo o que lhes restava de humanidade e um pedaço de cada um de nós.

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