Esses Dias Quentes Prestes a Acabar

Glauber Cruz
Construtor
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48 min readJul 19, 2019

Para Juarez

O suor.

É a primeira coisa que vem à minha cabeça quando penso naquela tarde de carnaval: o suor. Ele caía das minhas axilas e escorria num zigue-zague malicioso pelo meu tronco, até chegar no cós do meu short. Lá embaixo dele, sob o tecido fino, também era tudo suor. Virilha e testículos, um universo de pentelhos umedecidos. Eu escorria por cada poro do meu corpo, e não sabia dizer se era o calor humano do bloco, ou o bafo que subia dos paralelepípedos ou mesmo aquela sensação que deixava a boca do meu estômago mais ansiosa que o normal, no ritmo do compasso acelerado do meu coração, que promovia todo o fervoroso trabalho das minhas glândulas sudoríparas.

Provavelmente eram todas e cada uma dessas variáveis que determinavam a minha condição úmida. Mas me atraía muito a última hipótese, pois naqueles dias de carnaval, aquele tremor no estômago e aquele batuque ansioso do meu coração eram coisas boas demais para serem ignoradas. Coisas que meu espírito — armado do seu raio romantizador — adorava manipular com as mãos e colocar no colo das lembranças, como a única coisa capaz de permitir a existência de dias já passados.

E eles existiam, na terra dos pensamentos debaixo dos meus cabelos crespos, também suados. E assim como eu pensava no meu suor, eu também pensava no rosto dele, perdido no meio da multidão, encontrado por mim no meio da multidão. Havia uma displicência com o mundo no jeito como ele sorria, como se tudo fosse desprovido de qualquer porcentagem de importância. Assim ele é, e assim é o carnaval.

Daí em diante, as coisas dançam na minha memória no compasso de alguma música ressuscitada da década de 90, e as imagens ficam embaçadas pelo teor alcoólico do seu conteúdo, como se eu estivesse acordando de uma sesta em dia de inverno. O que eu lembro é que instantes depois eu avançava naquele universo de coisas em choque — pessoas, bebidas, músicas e sexualidade — e, reunindo toda a coragem que eu não tinha e que alguns muitos goles de cerveja me faziam acreditar ter, eu me abriguei no raio dos olhos dele e disse:

“Eu preciso falar contigo.”

A reação dele não foi de surpresa. Nada parecia surpreender aqueles olhos que oscilavam entre a malícia e o sono.

“Não agora, depois”, eu alertei em seguida. “Agora eu não tenho condições.”

Foi quando percebi que realmente não tinha condições, já que a minha língua tropeçava nela mesma, procurando amparo nos meus dentes só pra se esticar novamente, inerte e preguiçosa, encharcada em cerveja barata e quente.

“Tá bom”, ele disse. E sorriu.

Na verdade, não sei se ele sorriu.

Percebi isso quando minha axila escorreu. Não aquele escorrer malicioso do carnaval de meses atrás, mas aquele escorrer desajeitado, tímido e triste de gente parada sob o sol, como se o suor estivesse acordando da hibernação e aprendendo, poro por poro, a escorrer novamente. É, acho que ele não sorriu. Talvez fosse mais um tropeço da minha cabeça naqueles dias quentes que, segundo a previsão do tempo, estavam prestes a acabar.

“Tá bom”, ele disse e tão logo a sua boca se fechou, todas as coisas ansiosas ficaram cobertas por uma camada de calmaria juvenil. Até aquele momento, estava tudo resolvido. Dei as costas e caminhei para o resto da noite, que eu sinceramente não sei como terminou.

Sentado na porta da casa da mãe e lembrando daquela barulhenta, suada e alcoólica tarde de carnaval que, embora estivesse na vizinhança dos dias, parecia ter ocorrido há muito tempo, eu senti ainda mais o peso daquela sensação de vazio que se assentava sobre cada pedaço daquele lugar — cidade, pátio, casa — que eu não conseguia mais chamar de meu. Era como se o tempo tivesse sugado tudo, os sons e os cheiros, as palavras e as pessoas. As muitas janelas — espalhadas pelas casas daquele pátio como uma epidemia nunca aplacada — e as portas de madeira emolduradas por batentes dilacerados por cupins viraram mais que recortes naquelas estruturas: viraram potenciais pontos de fuga, através dos quais fugiram, em debandada desesperada, filhos e netos, pais e irmãos, sobrinhos e bisnetos. Agora era tudo silêncio, era tudo passado, tudo distante e cansado de seguir, de forma que a única alternativa que poderia ser vislumbrada no horizonte do futuro era se conformar e permanecer ali, inerte.

A primeira vez que senti isso, me repreendi. Olhei para os meus pés e vi que eles estavam sujos do pó que se espalhava pelo caminho dos que fogem. Eu era, afinal, um daqueles fugitivos que, pulando uma janela ou correndo por uma porta, correu sem olhar para trás e esqueceu como chamar esse lugar de casa. Portanto, aquela sensação de vazio, de coisas que apenas ecoavam, não existindo de fato, poderia não passar de um arroto arrogante de quem come o passado e expele um presente supostamente superior.

Mas ali, sentado na porta da casa que eu achava estranho chamar de casa, já que não morava nela há cinco anos e que eu passei a chamar de casa da mãe ou casa da vó, olhando o menino de olhos baixos sentado perto de mim, numa daquela cadeiras de praia da vó que rangiam ao serem abertas, e lembrando de todas as coisas que se acomodavam umas sobre as outras antes e depois daquela tarde de carnaval, eu tive de admitir para mim mesmo que era justamente aquela sensação de distância e de um passado que se fazia presente que me trazia conforto.

Cada tijolo daquelas paredes, cada retalho de sol sobre o chão da sala, cada azulejo verde-esmeralda do banheiro, cada um dos rostos do time de futebol de várzea que encaram com olhares paralisados a peça gelada do meu avô, cada rodopio dado pelo cheiro de alho frito na cozinha toda amarela trazia uma sensação de paz e de organização. Era como chegar do colégio com treze anos, todo suado, todo fudido, com o joelho ralado e a alma ferida e encontrar a mãe que, com um olhar, me diria tudo sem dizer nada, me pegando pelos ombros, me sentando na mesa e explicando que não havia motivo para muito pavor, pois tudo ficaria bem.

E naqueles dias as coisas não estavam bem, pois diferentemente dos meus treze anos, a possibilidade de desligar a chave das preocupações era inexistente. Ainda assim, todas aquelas pequenas coisas me faziam acreditar, com uma intensidade sincera, que de fato tudo ficaria bem. Senti uma cumplicidade confiante no olhar do guri sentado na cadeira quando seus olhos se bateram nos meus.

Fui para o quarto que por anos foi o quarto que dividi com a mãe e com a mana e que naquela manhã de sábado, assim como em todas as outras manhãs de sábados desde que alcançamos a puberdade, era só o quarto da mãe.

Ela estava no quarto. Havia engordado um pouco desde a última vez que eu a vira, no último feriado de páscoa, quando ela viajou pro lugar cinza e ao mesmo tempo iluminado que agora eu chamava de meu. O sol que entrava pela janela criava uma fina película em torno da sua silhueta. Seus fios de cabelo crespo ganhavam um tom amarelado; seus dedos finos cheios de calos estavam levemente avermelhados nas pontas enquanto dobravam antigas cobertas que cheiravam a amaciante.

“Pleno junho e esse calor, nunca vi isso. Se eu soubesse nem tinha mandado lavar essas cobertas”, ela reclamou, ficando na ponta dos pés para alcançar a parte superior do guarda-roupa, onde ficavam as cobertas. Sempre achei que ela se movimentava demais, não parando um único momento, olhando sempre para todos os lados, sempre procurando algum objeto para manipular. Pegou um pesado cobertor cinza que existia há anos, feio de um jeito único, quente de um jeito também único.

“Isso existe ainda?”, eu perguntei.

“Sim. Tava guardado. Acho que o que mais tem aqui é coberta guardada.”

“A mana vai dormir aqui comigo?”, perguntei olhando pro colchão no chão ao lado da cama.

“Vai, nesse aperto.” A resposta era curta mas o tom confirmava o repúdio que ela tinha ao fato de que os quartos que eram meu e da mana quando éramos adolescentes terem virado peças ocupadas pela máquina de lavar roupa e por coisas velhas, assim como a maioria das peças daquela casa. Ela via como uma espécie de ultraje: como voltariam os filhos pródigos se não teriam onde ficar? “Eu pedi pro Maneco me ajudar a limpar algum quartinho, mas ele nunca pode fazer nada. Só enfiou esse colchão aí no chão, eu disse que ia ficar um nojo de apertado, mas ele não ouve nem trovoada!”

“Mãe, nós vamos ficar só um final de semana.”

Ela suspirou, largando o cobertor e parando por uns instantes, colocando uma mão no pescoço e outra na cintura, a pose clássica que fazia quando estava pensando. Eu nunca soube dizer o que minha mãe estava pensando, assim como nunca conseguira falar para ela sobre o que eu estava pensando ou sentindo. A parede que se erguia entre nós sempre me deixou muito inquieto. Uma parede alta e lisa demais para poder ser escalada, grossa demais para ser perfurada, nos impossibilitando de dizer coisas mais longas do que um “como tu tá?” e um “estou bem”.

Uma buzina soou na rua e ela despertou.

“Será que é tua irmã?” ela perguntou e, sem nem me dar chances de responder, já saiu do quarto.

Eu não via Ana há duas semanas. Era uma coisa que a mãe não entendia, essa coisa de morar na mesma cidade e não se ver. Podíamos elencar todos os motivos — os horários contrários, os compromissos difíceis de encaixar, o preço do Uber — que ela não entenderia. Não que fosse necessário estarmos na presença física um do outro. Desde o dia em que nos percebemos como irmãos, numa noite de inverno assustadoramente mais gelada que o normal, eu e Ana passamos a andar pelo mundo numa sintonia intensa, carinho e proteção EaD. Eu sabia como ela estava só pelo comprimento dos seus “ãããããã” nos áudios do WhatsApp, assim como ela sabia como eu estava pela ausência dos meus tweets na timeline. Quando nos víamos, conseguíamos entender um ao outro só pelo jeito de mexer no cabelo ou pela forma desviar o olhar dos olhares alheios e também pela leitura dos lábios grossos um do outro, quando precisávamos falar coisas que só nós dois poderíamos saber.

Na última vez que nos vimos, numa noite barulhenta de karaokê, dias depois da conversa derradeira que eu e ele tivemos, eu fiquei a noite inteira colado nela, os olhos cheios d’água, indecisos entre o desabamento e a firmeza toda vez que ela batia a mão no meu ombro, ou a enrolava nas minhas próprias mãos, ou mandava algum amigo nosso tomar no cu quando insistiam em me puxar para cantar alguma música dos anos 80.

“Tu quer ir embora? Tu não precisa estar aqui”, ela me disse, com aquela voz baixa que a vida nos ensinou a ter, nos forçando a ser experientes leitores de lábios, pelo menos dos lábios grossos um do outro, herdados daquele que poderíamos chamar de pai.

“Não, não. Vou ficar mais um pouco pelo menos. Pela Alanis.”

“Alanis vai entender perfeitamente. Foi tu que levou ela pra casa quando ela passou mal no teu próprio aniversário.”

Naquele dia eu ri, acima de tudo. E ali minha risada parecia estranha de tão desconhecida, enquanto ressoava na minha cabeça. Era estranho achar estranho o som da minha própria risada.

“Eu sei. Mas ela tá tão bem, olha lá”, eu apontei com a cabeça.

Alanis estava do outro lado do pub, dançando daquele jeito esquisito que só as pernas finas e compridas dela sabiam dançar. Rodopiou tanto que tropeçou e quase caiu sobre um casal esparramado sobre um puff, perto do telão.

“Até o fim da noite ela rala aquela calça. Se prepara pra ouvir a choradeira, ela pagou uns 400 contos naquela porcaria”, disse Ana.

Mas eu não prestava mais atenção em Alanis ou na sua calça. Eu olhava para o casal, que ignorava todo o barulho ao redor mergulhando em si mesmos e um no outro, falando baixinho, rindo seus risos cúmplices, emoldurados pela felicidade dos primeiros tempos de amor. Não consegui ler o que falavam, tinham os lábios finos demais.

“Vou no banheiro”, eu anunciei e nem dei tempo de Ana dizer “tudo bem”.

Atravessei aquela algazarra toda e passei pelo casal. Não havia fila no banheiro e eu só tive tempo de agradecer a isso mentalmente antes de me despejar em lágrimas na pia. Num estalo, a minha cabeça virou aquele looping de dias, horas, minutos e segundos em que o rosto dele estava próximo do meu a ponto de eu poder tocá-lo, momentos cheios de uma despreocupação e de uma preguiça para com todo o resto que parecia até fazer as horas passarem mais devagar. Se alguém me perguntasse eu não saberia dizer em que momento aquilo começou. Se no meio-fio na frente daquele boteco sujo que vendia cerveja barata onde nos encontramos pela primeira vez, ou naquela tarde quente de carnaval, ou mesmo dias depois dela, ali naquele mesmo pub, quando eu disse o que precisava falar. Aquelas coisas todas pareciam rodopiar pelo banheiro, que era tão pequeno que elas esbarravam em si mesmas tão logo que saíam da minha cabeça, me fazendo lembrar perfeitamente das palavras dele:

“Por que a gente não fez isso antes?”

Ele tinha um copo de chope meio vazio numa das mãos e meus cabelos na outra. E eu estava ali, jogado sobre ele, e os dois jogados sobre aquele puff, observando os outros em seus happy hour, com as palavras que precisavam ser ditas recém ditas numa caminhada tranquila pela cidade ainda frescas na cabeça. Eu disse, com o total comando da minha língua, que não estava preparado para estar muito longe dele, certeza que surgiu justamente por estar muito longe dele. Nos conhecíamos há quatro meses e estávamos na dúvida do que éramos e do que não éramos. Em algum momento, a falta de respostas para essas dúvidas acabou por nos rachar e, desconfiados de que aquilo tudo não passava de uma superfície de crème brûlée, fácil de quebrar, fácil de digerir, fácil de esquecer, seguimos cada um pro seu lado. Até que naquela tarde de carnaval o suor e a batida nos fizeram lembrar da sintonia que existia quando não pensávamos nas perguntas ou nas respostas.

Havia uma nostalgia dos primeiros tempos, aqueles logo depois daquela sarjeta, e então dias depois da tarde de carnaval, já não encharcados de suor, jogados sobre o puff, havia junto dessa nostalgia uma certa vontade de tornar tudo aquilo mais concreto. Rimos ao admitir que ainda não tínhamos respostas de fato. Mas nos beijamos para esquecer daquilo, ou pelo menos para adiar aquilo para pensar mais tarde.

Quando saí do banheiro o casal finalmente se beijou, no exato momento que Alanis começou a cantar “Like a Prayer” no karaokê. E ali eu me vi, por trás dos meus olhos vermelhos, desejando mais uma vez estar perto dele, dividido de forma sincera entre o medo e a vontade de vê-lo ali, naquele lugar tão nosso.

“Eu vou pra casa”, eu disse pra Ana e ela não fez nada além de assentir silenciosamente e pousar a mão sobre a minha.

Tinha um calor que só a mão dela tinha. Desconfio que era um resquício do calor da água quente que queimou nossa pele no dia em que nos percebemos como irmãos.

Ela apertou mais uma vez os meus dedos grossos e perguntou se estava tudo bem. Quando abri os olhos e a vi sob a luz do sol, com seus dentes perfeitamente alinhados, brancos como gesso, e os cachos abertos caindo pelos ombros, tive vontade de perguntar por que as coisas tinham que ser tão difíceis. Acabei apenas sorrindo. Eu estava mais uma vez empenhado — involuntariamente — em praticar o exercício de puxar uma lembrança que puxava outra e mais outra e assim por diante.

“Tô indo”, eu respondi. “Aqui pelo menos não tem o risco de eu ficar bêbado e ir correr atrás dele.”

“Não duvide da capacidade da cachaça do Gaúcho.”

Rimos e nos demos um abraço.

“Parece que faz meses que eu não te vejo. Tá com o rostinho cansado”, Ana me disse.

“Sabe o que é isso?”

“O quê?”

“Cansaço.”

Ela sentou ao meu lado, rindo.

“Aqui estamos, de novo.”, ela disse.

“Sim. Juntos. Tão juntos que vamos até dividir o quarto”, apontei pro colchão. “Não que isso seja uma novidade”.

“Obviamente eu vou dormir na cama e tu no chão.”

“Há chance de escolha?”

“Não.”

Ela apertou minhas mãos mais uma vez e tive o vislumbre daqueles dedos compridos dele ao redor dos meus. A noite lá embaixo estava agitada, e nós mesmos estávamos agitados, apesar de quietos.

“Eu não sei o que tá rolando aqui, sabe?”, ele disse pousando a mão sobre o peito. O terraço estava escuro e lá embaixo a cidade se esparramava iluminada. Pessoas andando de bicicleta, outras esperando o ônibus, algumas outras tantas só caminhando, existindo na noite recém caída. “Eu tenho essa vontade de estar sozinho, de não querer contato com ninguém, de não ver ninguém. Crianças solitárias, adultos solitários.” Ele pensou por uns momentos, olhando para a rua lá embaixo, uma veia pulsante no corpo da cidade. “O que tu sente a respeito disso?”

Eu não sabia dizer. Havia muitas coisas que eu não sabia dizer quando pensava na gente. Não sabia dizer sobre aquela irritação que tropeçava na boca do estômago quando ele fazia comentários desagradáveis; também não sabia explicar o medo que sentia ao pensar na possibilidade de ouvir aquelas palavras derradeiras da boca dele — e ele sempre parecia estar prestes a dizer aquelas palavras derradeiras; não sabia explicar a ansiedade que sentia por não conseguir imaginar o que ele faria, o que ele pensava e também não conseguia falar sobre aquela vontade de querer ordenar seus movimentos, querer ordenar a sua falta de planejamento, o seu caos particular. Ali, olhando pra ele e tentando divisar os seus traços no escuro com o apoio das luzes que chegavam lá de baixo, me perguntei seriamente se eu o amava de verdade ou se aquilo tudo era uma afobada vontade de proteger alguém.

“Eu não sei dizer. Eu só queria entender o que eu sou no meio disso tudo. Onde eu estou no meio disso tudo.”, falei.

“Disso tudo…”

“Sim, a gente. Sabe, eu te amo de uma forma que eu desconheço, de um jeito que me é estranho, ao mesmo tempo que sei que é meu jeito. Eu não entendo muito bem isso. Não sei se quero entender, talvez eu tenha medo.”

“Se te dá medo, talvez não seja um coisa boa”

Olhei nos seus olhos, ou imaginei seus olhos ali no escuro do terraço e, como em outras vezes naquelas semanas depois do chope e do puff, quando a temperatura era amena, dias quentes e noites frescas, embalados por sensações lancinantes e martelares, as palavras pareceram coçar na garganta dele, indecisas, ansiosas, medrosas.

“A gente precisa ver o que é melhor pra gente”, ele disse por fim.

“Cê tá tão longe…”, disse Ana me encarando com o canto dos olhos. Tinha recusado o café que a mãe oferecera e me puxado pelo braço até o fundo do pátio para cumprirmos logo o ritual que prometemos fazer quando voltássemos para a aquele lugar que ela também não conseguia chamar de seu: visitar a tapera.

“Pensando numas coisas aí. Lembrando de outras…”

“Como sempre. Quieto demais, pensativo demais esse meu irmão.”

Ela me olhou e riu. Ri junto, pois sabia que ela tinha a audição aguçada o suficiente para ouvir as engrenagens do meu cérebro girando uma ao redor da outra sempre que caía no looping das lembranças.

Ali, no meio do matagal no fundo do pátio, o ar era mais fresco. A pequena casa de madeira ainda se mantinha em pé com os esforços da saudade e das lembranças. Tinha um aspecto cansado, as paredes enfraquecidas, as janelas sonolentas. O telhado caído de um lado e a tinta descascada — cujo descascado também já se descascava — davam a sensação de que ela respirava fracamente. Ela sempre existiu, aquela casa, desde muito antes dos tempos em que eu e Ana éramos pequenos, quando ainda éramos estranhos um ao outro. Era como uma cicatriz no chão daquele pátio, um rasgo do passado ainda rasgado no presente.

E tudo ali era passado. Aquele silêncio absoluto e opressivo, aquele matagal plantado pelo tempo que aos poucos engolia os arredores e a própria casa em si. Tudo ali — e não só ali, mas tudo naquela cidade, naquele pátio, naquela família — era de uma solidão sólida, tão palpável que mesmo naquele dia em que um bafo modorrento pairava sobre tudo, podíamos sentir intacto, como há anos, o frescor daquele matagal e daquelas paredes ainda subir pelas canelas e lamber a nossas pernas.

Naquela casa velha, em algum inverno há muito passado, começara tudo. Era improvável que aquela casa estivesse ainda em pé, ao mesmo tempo que fazia todo sentido. Fora por trás daquelas paredes e sob aquele telhado que o vô e a vó deram início ao que eu chamaria, anos depois, de família. Nunca fora, para mim, uma casa de fato. Não pelo fato de nunca ter visto alguém morando nela e conhecê-la desde sempre como uma companheira inseparável do abandono, mas por vê-la como um mecanismo que articulava presente e passado. Não haviam fotos dos dias em que ela não fora uma tapera — como a mãe a chamava — pois quase não haviam fotos da minha família. Ainda assim, todos conheciam a tapera e a sua história, todos sentiam um apreço por ela e dificilmente alguém que tinha nas veias o sangue que começou a correr ali, dentro dela, poderia se imaginar sem ela. Sem ela, não havia nada. Não havia história, não havia origem, não havia passado, não havia presente.

Como uma cicatriz que coça em dia de chuva, aquela tapera coçava no fundo de cada um que nascera sobre aquela terra. Não saberia dizer ao certo se na cabeça, ou no peito, ou no meu sexo, ou em todos os lugares. Mas algo ali me pegava com mãos firmes e me revirava por dentro.

Atrás dela havia uma tipuana que, embora parecesse sempre do mesmo tamanho, crescia terra adentro, levantando tudo pela frente, inclusive a própria tapera. Suas raízes invadiam as peças, empurrando para cima e para os lados as paredes que, mesmo de madeira antiga, pareciam muito sólidas. Era como se meu avô estivesse ali ainda, segurando cada pedaço prestes a ceder com aquelas mãos de dedos finos, herdadas por minha mãe, respingadas em minha irmã.

Era um homem silencioso o meu avô, e desconfio que tenha vindo dele toda a tradição do silêncio da minha família, reiterada pela minha avó, igualmente sólida, de ombros nunca curvados, de olhos atentos, que ensinava aos filhos e depois aos netos e até para alguns bisnetos, a língua do silêncio que desenvolveu com o homem com o qual ela lançara as sementes da nossa história ao chão.

A historiografia familiar conta que depois que minha mãe nasceu — a primeira de sete — meu avô alcançara patente mais alta no Exército e, com o soldo, ele e a vó abandonaram a tapera, não indo muito longe, erguendo uma casa alguns metros em frente no mesmo pátio, onde anos depois a vó sentaria para fazer tricô durante o inverno ou para cochilar depois do almoço durante o verão.

Com o tempo, os filhos foram crescendo e, junto deles, mais casas e mais gentes, que se empilhavam naquele pátio extenso que aos poucos foi perdendo o seu verde de mato para ganhar outras cores: as cores dos tijolos, as cores dos sorrisos de dentes muito brancos e as cores daquelas peles de um escuro reluzente que ficava ressecado nos dias de frio.

Quando, munido de um prego e dos meus 13 anos de idade, eu risquei meu nome e data na casca daquela árvore junto à casa onde tudo parecia ter nascido, gravando a minha passagem por aquele retalho de mundo, aquele pátio era cheio de vozes e de risadas, mas também de silêncios e lágrimas. Agora, sob o meus dedos, a marca parecia mais grossa e o pátio estava de fato vazio, um universo de esqueletos pouco a pouco seduzidos pelo matagal do tempo, sedução essa sempre interrompida pelas lâminas de tio Maneco, que sob as ordens da vó devolvia tudo ao chão, numa afiada demonstração de esperança e de certeza na crença de que, um dia, todos voltam ao ponto de partida. Mesmo que fosse dele que todos fugiram em debandada.

Voltar…

Naquela tarde em que o mundo caiu pesado sobre tudo, trancando ruas, transbordando bocas de lobo, inundando halls de entrada, encharcando tênis e meias, se instalou no meu peito a certeza de que voltar era preciso. Havia um gosto de saudade em algum ponto da minha língua, mas havia também um outro sabor, ainda mais forte, algo potencialmente agridoce, mas que eu não entendia muito bem do quê nem de onde vinha, mas que eu sabia para onde me levaria.

A chuva escorria pela janela. Era fim de tarde, embora o tempo parecesse parado, sob a égide de nuvens absurdamente pesadas e furiosas. E ali, sentado dentro do meu quarto, observando aquilo tudo e imaginando se o horror que se instalava lá fora era tão doloroso quanto o horror que se instalava dentro de mim, comecei a chorar, sentindo aquele gosto de saudade, sentindo uma vontade de me realocar na ordem dos dias, no compasso do tempo, na razão do meu ser e do meu estar. Minhas lágrimas eram quentes, assim como aquelas que deslizavam pelo meu rosto sem entender direito o porquê há semanas. Quando as esfreguei, eu lhe vi, ali parado na minha frente. Tinha os olhos miúdos e a boca ensaiava para se tornar grossa e vermelha como carne.

“Que estranho isso… de sentir falta de si mesmo, não?”

O menino não respondeu. Talvez ele não soubesse ainda que era aquilo do qual eu sentia falta. Olhei para o teto, um teto branco, frio e triste, como quase tudo naqueles dias.

Naquela tarde, ele havia sumido, mesmo que na agenda imaginária dos nossos combinados estivesse rabiscado um “encontro com o Nego”. Ele havia soltado a minha mão pois estava no olho de um furacão. Um furacão de dias ruins, que derrubavam tudo o que viam pela frente, deixando apenas os escombros da dor espalhados sobre tudo, inclusive sobre as coisas boas.

Soterradas, as dúvidas sobre o que eu era na vida dele naquele momento e sobre o que éramos, se seguiríamos adiante ou pararíamos por ali mesmo, emergiram como a dor posterior a uma tragédia.. E ali, sob a vigilância daqueles olhos miúdos que encobriam um silêncio absoluto, aquelas palavras derradeiras coçaram na minha garganta, ricochetearam nos meus dentes e derreteram na saliva sobre a minha língua.

“A gente precisa ver o que é melhor pra gente”, ele dissera naquela noite, no escuro do terraço.

Eu soube, enfim, o que era melhor pra gente.

Me doía em níveis variados a ideia de não darmos certo e de que o melhor pra gente não era a gente, como dois homens juntos, compartilhando as cores e os suores de um carnaval ou as dores e as lágrimas de um furacão. Naquele dia de chuva, eu aceitei (ou entendi) que ele não me fazia totalmente bem, mesmo que cada momento ao seu lado fosse muito mais do que um rastro na linha dos meus dias, mesmo que eu tivesse vontade de ignorar toda a rotina prática que tinha para além da porta do seu quarto e permanecer ali, na sua cama, ao seu lado, enquanto a luz do sol subia e descia. Mesmo com tudo isso, havia algo que não permitia com que nos encontrássemos de verdade. Era esse o nosso nervo exposto, a nossa cicatriz ainda aberta. Uma estranha distância, próxima demais, que martelava o compasso dos nossos dias, que dissipava enquanto fazíamos sexo oral um no outro, mas que pesava como cimento quando estávamos inseridos um no universo do outro.

“Tu fica tão longe”, ele me disse no dia em que saímos com seus colegas da faculdade. Estávamos na rua, num boteco cheio de gente que era estranha pra mim, distante das minhas fronteiras, desajustadas ao meu tempo. Eu não conseguia achar uma fresta que me permitisse entrar por inteiro nos seus diálogos. Eram todas tão estreitas, todas tão difíceis de passar, que eu me quedava num looping de apenas rir e de vez em quando comentar alguma coisa até cair em silêncio, pensando em outras tantas coisas.

“Tô cansadinho… e com sono…” eu respondia. Era meu mantra, minha arma de defesa, mesmo que ele não tivesse me atacando. Pensei muito nisso e no que nos fazia tão distantes, apesar de próximos. Pensei nos banhos que a mãe dele dava nele quando era pequeno e pensei nos banhos que a minha mãe me dava quando eu era pequeno; pensei nas brincadeiras que fazíamos distantes, cada um em sua infância; pensei nos pátios pelos quais corremos, pensei nas nossas famílias, pensei nos nossos trajetos. Pensei nisso tudo e mais um pouco e encontrei diferenças (muitas), encontrei semelhanças (poucas) e nenhuma resposta. Não era possível que sensações tão lindas como aquela que senti no dia em que sentamos no meio-fio, ou no dia em que o vi na multidão do carnaval, fosse definida por algo tão simples como a diferença. Naquela chuva, percebi que era possível, que aquilo era apenas uma peça numa estrutura maior, mas uma peça saliente, importante, tornando aquilo sim, possível.

Um raio caiu, furioso e iluminado, e os olhos miúdos daquele menino de 13 anos ficaram impassíveis, sempre olhando os meus, em seus 25 anos, derretidos em lágrimas, tristes como aquela chuva que caía lá fora. Eu me sentia estranho, distante de mim, mergulhado demais nele, na rotina dele, nas possibilidades com ele. E então, sob a luz do raio, eu vi que aquela sensação agridoce era justamente a vontade de olhar um pouco mais pra mim mesmo, olhos miúdos em olhos miúdos. Tudo pareceu fazer sentido sob a minha ótica de que as coisas precisam fazer sentido. Peguei as palavras derradeiras e as coloquei de volta na boca. Eu sabia o que fazer com elas.

“Eu tinha medo desse lugar”, disse Ana, no meio da tapera, ignorando o que a mãe dizia (que a casa era só bicho e estava prestes a cair). “Desde sempre… quando a gente brincava de esconde-esconde… quando o Lu e a Maria se enfiavam pelos cantos e a gente ia atrapalhar eles… ela já me dava arrepios”

“Não sinto isso. Pelo contrário na real”, eu disse, passando as mãos pelas paredes de madeira murchas de umidade. “Eu sempre me senti confortável aqui… estranho. Eu tinha medo era da peça do vô, isso sim.”

“Ah, mas da peça do vô acho que até ele tinha medo.”

A “peça do vô” era um cômodo pequeno e gelado, talvez a pedaço mais gelado da casa que ele e a vó construíram depois de deixar a tapera no fundo do pátio. Não pegava sol, tinha uma única janela e estava milimetricamente no coração da casa cheia de peças que eles construíram. Era um universo de troféus antigos de campeonatos de futebol de várzea, documentos importantes, fotos de times de futebol e de cerimônias militares e de prateleiras onde se equilibravam perigosamente dezenas e dezenas de livros, revistas e alguns jornais antigos.

Mas ela não era só isso, só uma peça, era quase uma instituição dentro daquele espaço. Ninguém além do vô e da vó podia entrar naquele recinto pequeno e todo mundo que passava da soleira da porta aprendia que aqueles eram os domínios dele.

Da mesma forma, todos aprendiam que violar aquela regra totêmica era o que deveria ser obrigatoriamente feito por todo e qualquer ser que tivesse aquele sangue correndo pelas veias. No verão, nas tardes quentes desse lugar, quando o apito do homem que vende picolé ressoava pela tarde quente como uma sinfonia de alegria e alívio, quase uma alucinação no meio do deserto, era na peça do vô que eu e meus primos buscávamos refúgio. Ali o chão era gelado sempre e era bom demais sentir o contato lancinante da pele com ele, ou então o frescor daquelas paredes pintadas toscamente num azul que flertava sem o mínimo de vergonha com o branco. Para mim, era dentro daquela peça que pulsava o coração da nossa família: o pulsar dos silêncios, a manutenção da rigidez das posturas, as falas sérias e inalteradas. Tudo vinha dali, daquele pedaço pequeno de alvenaria antiga, sob um forro descascado. Isso me fazia pensar no vô não como uma figura fria, mas como o próprio frio. Por trás da sua voz grave, da imponência do seu caminhar, da capacidade de dizer tudo só com um olhar ou um gesto, da sua existência gravada em cada pedaço daquela casa e daquele pátio e das pessoas que ali estavam e por ali passaram — mesmo depois de morto — havia o frio. Não a frieza humana e distante, mas sim o frio que assola, que racha os lábios, que dói na garganta, que arde nos pés, mas que aproxima do fogo, que nos esquenta em esfregar de mãos e corpos, que nos traz lembranças e que nos faz sonhar acordados, pensando no passado.

Fora ali, em uma das tantas incursões secretas, que conheci a leveza: a leveza das páginas dos livros e a leveza da vida. Entre uma saída e outra do vô e da vó, eu li o primeiro livro da minha vida, quando ainda tropeçava nas palavras e demorava para concatenar um parágrafo com o outro. Ali, pela primeira vez senti o prazer que envolvia o ato de ler. Acho que foi a leitura mais demorada da minha vida, pois eu só podia ler quando o vô não estava ou quando a vó estava distraída. Quando ele saía, eu largava tudo o que estava fazendo e corria para a sua peça, entrando pé por pé e engolia os parágrafos tropeçando nas palavras, recolhendo-as pelo caminho e as pondo de volta no lugar. Meu coração batia e a cada ponto final que eu chegava, mais vontade eu tinha de ler a próxima sílaba, a próxima palavra, o próxima parágrafo e a próxima página. Quando folheei a sua última página, numa tarde de sábado de tempo fechado, fiquei olhando para o ponto final derradeiro, sem saber o que fazer.

Por fim, decidi primeiramente fechar o livro e devolvê-lo à estante, antes que o vô chegasse. Depois, fui para o meu quarto e em silêncio eu selei a minha relação íntima com as páginas dos livros.

Lembrar daquilo me fazia lembrar também do medo que eu tinha do vô naquela época. A mãe falava do peso de sua palmada, e meus tios falavam da aspereza de seus tapas. Mas um dia — algum tempo depois de ele falecer, frágil de câncer, um sopro da imponência que tinha e que era, engolido por ele mesmo (o frio) pedindo por calor sob aquele forro antigo — eu tive um sonho que me fez entender tudo. Era uma noite inverno e eu acordei quente. Pus os pés no chão e o tapete de retalhos que cobria o chão do quarto que na época era meu, de Ana e da mãe, massageou meus dedos sutilmente, sopros quentes numa noite fria. Mas não estava frio, de verdade: eu sabia que estava frio lá fora, pelo som de nada que tinha o frio e pelo bafo que o inverno baforava nas janelas. Mas estava quente, tudo quente. E havia também uma luz, como a de uma lareira, tremulando dentro de casa. Mas era estranho, pois ali não havia lareira, havia só aquele fogão a lenha escuro de fuligem, negro como a noite e aquela família, que havia sido posto para sempre no canto da cozinha toda amarela, onde o chão já era côncavo de tanto sustentar o peso da vó e sua cadeira e seu chimarrão e seu tricô e suas saudades e seu amor pelo vô. Ninguém nunca falou do amor de um pelo outro, mas naquela noite eu o vi. Vi logo depois do susto que os ruídos de coisas reviradas me causou. Vi assim que percebi que a luz vinha da peça do vô e tive certeza que vi ao encontrar a vó no meio da peça, dentro de um buraco enorme aberto no grosso piso de madeira, com os dedos longos e as unhas cravadas na terra, de onde ela tirava de tudo, de casacos de lã a brinquedos, de talheres a dentaduras, de terços a tocos de velas, de pedaços de bicicleta a xícaras quebradas, de carinhos a rancores, de lembranças a certezas.

Ali, eu vi o amor. O amor da vó pelo vô, mergulhada no calor da necessidade de tê-lo de volta e o amor dos dois por aquilo tudo. Aquela casa, aquelas pessoas, aquele universo construído pelos dois. Eu entendi que na verdade não era só frio, mas sim calor, sempre fora calor, sempre seria calor. Não o calor do jeito que as pessoas conhecem ou gostam de conhecer, mas um calor mais intenso, vindo tão de dentro deles que chegava a ser anterior a eles. Vi também que daquele homem sisudo, engomado em vida militar, exalava uma sensibilidade arredia, escondida por trás da necessidade de viver os dias como um homem, como aquele homem que o meio e a terra e o exército queriam que ele fosse. Eram tantos os livros e tantas as histórias naquelas estantes que só a sensibilidade de um leitor assíduo poderia dar conta daquilo. Era impossível, portanto, atrelar a ele somente aquela figura de homem feito de concreto, tão hermeticamente fechado a ponto de impedir uma rachadura e uma flor saindo dela. Tudo fez sentido naquele momento, e continuou fazendo sentido quando eu acordei, encharcado de um suor febril numa noite de um frio absoluto que engolia as paredes sem dó.

Ali, na tapera, tanto tempo depois, eu não sentia o calor do sonho tampouco o frio da noite sobre a qual ele se estendera, mas ainda pensava no vô com aquela certeza, como se ele tivesse me dito em suas próprias palavras, que era amor que pulsava naquela casa, não só frio, mas também amor.

“Ô, vamos almoçar logo, a mãe deve estar nos esperando”, disse Ana, num replay preguiçoso dos gritos que a mãe dava nos finais de tarde, quando as luzes no pátio começavam a cair e a noite começava a engolir tudo. Aquele lugar era só mato e bicho.

Longe da enorme tipuana e do matagal que subia sem nenhum tipo de critério, o dia era abafado. Um abafado gostoso, como se tudo fosse o sol das manhãs de inverno. Aquele bafo fazia o meu corpo se acalmar de forma morna. Naqueles dias febris em tristeza, tensionados por uma sensação de perda total das sensações boas, esses dias quentes, perdidos em um inverno com crise de identidade, recusando a se afirmar como inverno, era mais que gostoso não estar de músculos retesados, fugindo dele nos lugares e nas lembranças e, na fuga, tropeçando em situações hipotéticas construídas na minha cabeça, improváveis de serem inscritas na linha real dos dias.

Ele ainda girava em torno da minha órbita — ou eu da dele — toda vez que tirava meus pés do chão e me deixava levar pela cabeça. Ainda assim era uma sensação mais calma, não tão exasperada, absurdamente ansiosa e nervosa; era algo mais para o nostálgico, envolto na tristeza calma que envolve as coisas que não podem mais voltar. Uma sensação tão tranquila que, quando o cheiro do carreteiro de charque da mãe exalou da panela posta sobre a mesa, ele também exalou pelo meu quarto azul da cidade “grande”, iluminado pela meia luz da luminária, naquele final de domingo em que estranhamos o corpo um do outro durante o sexo e nos tocamos como dois distantes, como dois estranhos. A pergunta dele ao fim, sarcástica como ele, tornou tudo estranhamente concreto: eu poderia revirar aquelas palavras derradeiras dentro da minha boca como um Halls e, se quisesse, poderia facilmente tirá-las dali, expô-las ao mundo, torná-las reais.

“E aí, foi bom?”

Ele sabia que não tinha sido bom. Um sexo esquisito, apressado. Quando eu gozei, só por gozar, um suspiro irrelevante para a natureza — mesmo para minha própria natureza — me senti um personagem de filme pornô, sem antes nem depois, apenas um corpo, apenas a penetração, momentânea, prazerosa — ou não — e então o gozo; uma existência resumida a porra escorrendo pelas coxas, ou pelos dedos. Era contraditório, porém, pois justamente ele me fizera sentir no lado oposto dessa figura. Com ele eu tinha antes e tinha depois e mesmo nos momentos que eu sentia mais dúvida sobre nós ou até mesmo raiva de nós, eu conseguia lembrar da crença dele de que havia importância nos passos que eu dava e que havia uma beleza na forma como eu absorvia o mundo.

Por isso talvez o deboche emoldurado naquela pergunta tenha me feito suspirar e dizer aquelas palavras, enfim. Cuspi o Halls enquanto ele colocava a cueca, sob a meia luz da luminária.

“Acho que realmente não estamos fazendo muito bem um para o outro. Nego… tu quer terminar?”

Ele vestiu a cueca e sentou na cama ao meu lado, olhando para a luminária, como numa piada ruim silenciosa, procurando uma luz. Olhou pra mim, enfim, com aqueles olhos sonolentos, lindos de tão simples.

“Sim.”

Ficamos em silêncio por alguns instantes.

“O que foi isso, afinal?”, eu perguntei.

Isso?”

“A gente.”

Ele deu de ombros.

“Meio que um delírio coletivo”, respondeu por fim.

Rimos.

E no silêncio que se seguiu, interrompido vez ou outra pelo ranger das engrenagens dos nossos pensamentos, eu me senti leve. Há seis meses as coisas entre nós iam e vinham para ir novamente e voltar mais uma vez de uma maneira esquisita, muito intensa, um calor que aquecia e que queimava ao mesmo tempo. Havia algo na nossa cumplicidade que não era amizade mas também não era namoro, pegando o embalo das rotulagens e da inscrição das relações nas redes sociais. Havia algo na nossa cumplicidade que era estranha demais para se entender, gostosa demais para ser algo ruim mas também ácida demais para ser totalmente confortante.

Naquela noite, quando enfim decidimos terminar, saímos caminhando pela rua à noite, à procura de algo qualquer pra encher a barriga. Encontramos e, envolvidos pelo cheiro do cachorro quente barato, nos abraçamos e prometemos que ainda seríamos algo. Ainda seríamos cúmplices, seja lá qual fosse o crime que estávamos cometendo.

Aquele foi um bom final de noite. Mal sabia eu que ela — a noite — ria pelas minhas costas, talvez já sabendo dos dias difíceis que viriam logo depois daquele momento em que tudo parecia enfim, encaixado, sintonizado.

A mãe servia seu carreteiro e minha pressa e a de Ana era tão grande que acabamos queimando o céu da boca. Depois do almoço tudo sucumbiu à preguiça da sesta, e aquele tempo quente, de fazer suar sutilmente as axilas, tornava tudo ainda mais pastoso, como se os minutos derretessem, prolongando as horas e tornando as dores ainda mais pesadas.

Ainda doía, especialmente quando eu lembrava da mensagem que ele mandou numa noite de temperatura em queda, que antecedeu uma série de dias frios, dizendo que achava estranho sermos algo. O nosso crime, fosse ele qual fosse, não poderia mais ser cometido. Pelo menos não em parceria. Ali a nossa corda se arrebentou, e munido da certeza que nem algo seríamos — já que a sua sentença era categórica: “é melhor a gente parar de se falar” — eu entrei em pane. Foi-se a tranquilidade, veio a agitação.

Enquanto ecoavam pela cozinha o som dos talheres e dos pratos utilizados no almoço, que eu lavava com os dedos envolvidos por luvas de sabão volumosas como clara em neve, eu podia olhar para cada coisa que eu fizera nos últimos tempos e identificar ali um ponto de dor. Um suspiro, um apertar de olhos muito forte, uma lágrima, acompanhada de outras tantas.

Passou a ser rotineiro entrar naquele looping furioso e aparentemente impossível de interromper de olhar para qualquer canto da cidade e lembrar dele; de caminhar por ruas, sair por portas e entrar por outras, sempre assombrado pelo medo e a vontade de enxergá-lo. Não demorou muito — talvez um ou dois dias depois do término — para que eu passasse a procurar seu rosto no meio da multidão, nos lugares que íamos juntos, nos lugares que íamos separados, em todos os lugares.

Não demorou muito também para que eu me sentisse profundamente triste e sozinho. Não aquele profundamente triste e sozinho que pairava pela minha vida desde sempre, uma nuvem cinza que desde a infância pesava sobre minha cabeça, mas sim uma tristeza e uma solidão dura, crua. Eu secava os talheres quando lembrei daquela festa de rua, antes desses dias quentes, quando a fumaça do quentão se confundia com o vapor que saía quente da boca das pessoas. Naquela noite eu sentia frio nos pés — meias finas em All Star — e olhava para lá e para cá, o pescoço como que uma peça de corda, à procura dele. Naquela noite, todos os cachos pareciam os cachos dele em potencial. E toda a felicidade ao redor, em risos largos e alcoolizados, só serviam para evidenciar que eu não conseguia rir. Não havia nada naquela noite e naqueles dias capaz de me fazer rir de forma genuína, pois tudo era potencialmente vinculado a ele e à ausência dele.

Os dias eram tão pesados que eu poderia segurá-los nas mãos, de modo que lembrava deles, de cada um deles. E como demoravam a passar aqueles dias, instalados sobre uma estrutura cheia de espaços que eu ocupava com lembranças das mais banais, coisas que nem quando estávamos juntos eu lembrava. O ônibus que ele pegava, o seu antigo apartamento, o seu antigo bar preferido, a sua cerveja favorita, a sua opinião sobre determinada praça, o gosto por determinado artista, a hipótese de mudança no corte do cabelo. Vinham também as possibilidades hipotéticas: a crença num reencontro, em alguma mensagem enviada no escuro da noite, num aperto de mãos, qualquer coisa que fosse.

Acabou que depois daquela mensagem nós de fato nunca mais nos vimos, tampouco nos falamos. E por mais que eu o procurasse em todos os lugares, por mais que eu lembrasse de todas as nossas coisas e por mais que os pensamentos mais simples me fizessem resvalar numa ribanceira de lembranças, eu não o vi. Aos poucos eu via as minhas vontades se esgotarem. Tudo parecia mecânico demais e eu me sentia vivendo no piloto automático, apenas vendo os dias se empilharem uns sobre os outros e as coisas de ordem prática da vida se atropelando, num engarrafamento de tudo, de horas, de sensações, de lágrimas, de desejos.

Minha vida parecia febril. E não, não era o corpo, mas sim a vida. Tudo que eu fazia era num estado de anomalia, fora do compasso, doído, pesado. Uma confusão enorme, uma bagunça íntima generalizada, que me impedia de ver além do horizonte do fim do dia. E eram dias, aos quais eu sobrevivia, dias afogados em lembranças e vontades. Um após o outro. Eu poderia contá-los.

E eu chorava de um jeito banal. Chorava de tão frágil, de tão vulnerável. Por toda e qualquer coisa. Pelas pessoas de mãos dadas no parque; pelo idoso caminhando sozinho no passeio; pela música de versos melancólicos que parecia conversar comigo; pelo sorriso dos outros que teimava em não exalar para mim.

Dias tristes, aqueles. Dias frios, aqueles. De um frio macabro, que rasgava os lábios com fúria, que queimava os pés em meias finas com igual fúria. Dias em que os lençóis se perdiam na sua dificuldade de fazer calor. A cama parecia tão vazia. E de fato ela estava vazia.

Naquela noite em que Alanis completou seu 27 anos, embriagada em karaokê, eu voltei para casa sozinho, caminhando pelas ruas escuras, engolido pela vontade de que aquilo acabasse e pela tristeza de ver meus finais de semana enrolados em um novelo de melancolia, de mal estar, de desespero contido — o que o tornava ainda mais desesperado — e de perda — perda das companhias, perda dos dias e principalmente perda do meu tempo, meu tempo, que nunca mais iria voltar, que eu nunca mais iria recuperar, que se esvaía pelas minhas mãos, dia após dia, dia após dia. Foi o tempo que me encheu de desespero e me empurrou para a quadra escura onde meses antes, numa tarde quente de carnaval, eu o vi no meio do bloco.

E se eu não tivesse ido falar com ele? E se eu permanecesse concentrado apenas no álcool que mergulhava nas minhas veias? E seu eu não tivesse terminado? E se, e se, e se… Era um tudo um grande e se naqueles dias. E naquela noite em que o vapor abria caminho displicentemente pelos meus lábios, sob a noite sem nuvens, enquanto eu encarava parado, no escuro da falta de iluminação pública, aquele retalho do corpo da cidade, outrora tão quente, eu chorei do jeito que eu chorava sempre naqueles dias, mas também de um jeito diferente. Desde que me entendi por gente e dono de mim, do meu corpo e das minhas vontades, eu nunca me sentira tão frágil. E o conforto vindo daquela mão quente sobre meu ombro disputou espaço com o desespero de não ser mais dono de mim, do meu corpo e das minhas vontades. Tudo aquilo me guiava pelos dias, aquela tristeza me empurrava para lá e para cá, sempre cochichando no meu ouvido o quão tolo eu era por acreditar que, em algum momento da vida, eu estivera no comando de alguma coisa na minha vida.

Transbordei. Alguma coisa me puxou pela canela enquanto outra empurrou minha cabeça. E, cada vez mais fundo naquela tristeza ácida, eu comecei a divisar de um jeito ainda mais potente a vontade e a necessidade de que aquilo tudo acabasse. Eu estava tão triste, que em nenhuma palavra caberia toda a minha tristeza.

“Quando que isso vai acabar?”, eu me perguntei, enquanto as imagens dele se repetiam na minha cabeça, mais rápidas, mais reais. Aquela mão quente deu tapinhas nas minhas costas, delicadas, cheias de entendimento, cheias do carinho que temos pelo nosso eu mais frágil. Olhei para aquele rosto, que era o meu rosto, só que maduro, sereno, suave, tranquilo, algo distante do meu rosto convulso do presente, lavado em lágrimas e minado pela falta de esperança em dias melhores.

“Ô meu amor, que tristeza toda é essa?”, eu perguntei pra mim, com uma voz tão tranquila, tão entendida das coisas da vida como ela é.

“Não sei… eu… eu só queria que isso tudo passasse… sabe… superar as coisas… o que eu preciso fazer pra que isso tudo passe?”

E, no silêncio da noite e da ausência das batidas do carnaval, eu respondi.

“Esperar. Tu sabe, o tempo destrói tudo. Mas não só ele. Tu também. Nós também. Destruir e construir. Não esquecer, não. Usar cada pedra, cada cascalho pra construir algo novo, com aquilo que já temos. É assim, não é?”

Quando cheguei em casa naquela noite e dormi enroscado sob as cobertas, minha cabeça pensou tanto, em todas as coisas e mais algumas, nos olhos dele, no caminho que tomamos — se era o correto, se era o único a se tomar — na vontade de me entender como eu, na necessidade de articular meus dias com coisas boas e não com aquela tristeza que só me levava a abrir mais portas de tristeza. Pensei tanto que em algum momento minha cabeça deu pane e eu simplesmente dormi. Sonhei com ele, com a rua, com a noite na rua e sobre estar sozinho, na rua e no tempo, no espaço-tempo.

Na esquina silenciosa, no centro daquele lugar onde nasci, numa noite plácida, eu me senti bem. Bem por estar lidando com a tristeza de forma cordial, bem por ter passado aqueles dias tão tristes, bem por não me sentir tão sozinho, bem por estar calor. Um calorzinho de primavera, lindo de tão inofensivo, perdido no inverno.

“Lembro do meu primeiro porre”, Ana disse, ao meu lado. “Foi bem ali. Tava um frio do caralho”

“Foi vinho né?”

“Foi. Bá, foi foda. Lembra que eu fui com a mãe no mercado no outro dia? Podre. Cheguei lá e fui vomitar no banheiro. Até hoje eu sinto pena da criatura que limpou aquilo”

Rimos.

“Que saudade disso” eu falei, abrindo os braços e olhando pro céu.

“A noite?”, Ana perguntou, talvez já sabendo a resposta.

“Tudo. A noite, o tempo, o calor, a rua. Eu tava precisando disso. Só pra lembrar. Lembrar o que é isso. Lembrar o que eu sou”

Ana riu aquela gargalhada gordacha, que envolvia a gente num abraço apertado.

“Tu falou igual um classe média agora. Só falta dizer que vai fazer um intercâmbio pra se encontrar em algum país da Europa”

“Ah, é tipo isso. Só que com passagem econômica”

Rimos na noite que só não era vazia porque alguns jovens perambulavam para lá e para cá, engolindo cerveja quente, ou kits com muito gelo e pouca vodca, vidrados em cigarros de maconha barata. Em silêncio voltamos pra casa de braços dados. Ana parecia querer se certificar de que eu não fugiria, como na noite do aniversário de Alanis, em que eu me desviei dela propositalmente para explodir em lágrimas comigo mesmo no silêncio da minha solidão.

Quando chegamos em casa, não fomos para o quarto. Tiramos os tênis e fomos para o banheiro de azulejos verde-esmeralda, xodó profundo da vó, um surto de luxo naquela casa tão simples apesar de enorme, onde anos antes nos percebemos irmãos. Entramos na banheira de roupa e com as meias fedendo a chulé. Ali ficamos quietos, sentados um de frente pro outro, pensando em tanta coisa, quase numa troca de pensamentos. Uma coisa levou à outra e lembrei daquela noite, também de inverno, em que acordei com o choro de Ana vindo do banheiro. Não era um sonho e estranhamente eu sempre soubera daquilo, mesmo que fosse um sonhador assíduo. A porta do banheiro estava entreaberta e só entrei. Quando senti o piso frio sob meus pés, na mesma hora me arrependi. Naquela época havia entre nós uma raiva mútua, um rancor nada silencioso, barulhento em brigas furiosas por espaço, por objetos, por atenção da mãe, por todos e por nenhum motivo. A mãe sofria. Doía em algum lugar do espírito dela — e isso era visível no seu rosto, na sua expressão de fúria sempre que nós expressávamos a nossa fúria, e os punhos cerrados que ela batia sobre as coxas — o fato de que os dois filhos que ela plantara no mundo não conseguiam ao menos fazer uma sombra juntos. Dois galhos rebeldes de uma árvore frondosa.

Mas mesmo arrependido, eu segui. Passo após passo, ciente da babaquice que era invadir o espaço de minha irmã, mas embalado por uma necessidade de entender o porquê de ela estar chorando daquele jeito. Ri comigo mesmo ali, junto dela na banheira seca, ao cogitar a hipótese de que talvez eu já soubesse o porquê e por isso mesmo eu seguira. Sentei ao lado do box-banheira e senti o bafo da água, tão quente que parecia ferver. Ela me olhou. Esperei o xingamento ou o susto, mas só recebi o silêncio. Ana estava toda vestida dentro da água quente e os cabelos, que na época começavam a se libertar dos coques opressivos e das assassinas chapas de ferro quente, estavam caídos sobre os ombros. Eu me debrucei ali e fiquei olhando pra ela, sob a meia luz do armário sobre a pia, enquanto ela me olhava, tremendo de vez em quando, os olhos tão vermelhos que por alguns instantes eu achei que a água quente na qual ela estava mergulhada eram as lágrimas que ela jorrara em sua tristeza noturna. Para minha própria surpresa, eu cortei o silêncio.

“Eu lembro bem da hora que vi ele. Foi ano passado. A gente não tinha professora de geografia, então ficamos à toa na aula. Eu fiquei sentado numa classe, olhando pela janela. Então vi ele. Tava jogando bola no campo, tava na educação física. Ele tinha aquele cabelão cacheado e comprido. Sabe, eu achei ele tão lindo, eu não tive outra opção a não ser aceitar que achava ele lindo. Então, depois de um tempo, eu comecei a gostar dele. E era muito bom gostar dele. Digo, ainda é. Mas… é triste. E quieto. E solitário.”

Sinto que as palavras só caíram da minha boca. Talvez tenham derretido com o calor da água. E como eles estavam sempre ali, com vontade de sair, mas impedidas de fazê-lo por causa do medo, foi fácil elas escorrerem por entre os dentes e se pendurarem nos meus lábios, naquela época já grossos. Eu tinha 15 anos, Ana, 19 e nunca, desde o momento que aceitei que era um menino que gostava de gostar de meninos, eu falara sobre isso com alguém.

“Pra quem mais tu falou sobre isso?”, Ana perguntou, dando uma tremida.

“Ninguém.”

“Tu gosta desse guri todo esse tempo, e ninguém sabe?”

Assenti. Falar que eu sentia aquele sentimento tão bonito sozinho, que uma das melhores coisas que havia dentro do meu espírito era uma coisa que só eu poderia saber, de repente pareceu muito difícil.

Ana só chorou. E eu tive a certeza que ela chorava por ela e por mim, ao mesmo tempo. Balançou os ombros, respirou pesadamente, fungou de um jeito infantil e me olhou com os olhos gelatinosos, inchados de tristeza mas também daquela certeza absoluta que eles sempre tinham.

“Escuta aqui seu idiota”, ela disse apontando o dedo indicador. “Tu não tá sozinho, tá bom? Tu nunca esteve e tu nunca vai estar, nunca. Ouviu bem? Tu não está sozinho.”

Cada palavra soou como uma lufada de calor na minha cara. Naquele momento eu só me deixei derreter. Nem senti aquele tremor no nariz ou lábio tremendo. Apenas chorei. E nos meus quinze anos de vida, pela primeira vez eu chorei de carinho. Não estava chorando porque estava com medo de não aprender a tabuada; não estava chorando por me achar feio, por achar que minhas axilas fediam; não estava chorando por achar que todos me odiavam por algum motivo; estava chorando porque o banheiro estava quente, porque estava esparramado no chão de um jeito confortável e porque via ali, naquela mulher que dividia o quarto comigo há 15 anos, um lugar para encontrar amor e também depositar amor. Encharquei o pijama ao entrar na banheira e sentir a água me queimando. E ali ficamos, até as cores do dia começarem a se esgueirar pela basculante, até nossos dedos se dobrarem em rugas, até a água estar morna e salgada. Quando saímos, secamos os cabelos um do outro e trocamos de roupa para dormir até tarde no outro dia, quando acordamos sob um sol quentinho com a mãe nos observando. Era, talvez, o calor dela que tornara aquela água tão quente.

Eu ri, dentro da banheira seca.

“Que foi?”

“Acho que foi ali que eu comecei a ter essa fixação por cabelos cacheados”

Ana riu.

“Sim. Mas porra aquele cabelo era lindo, né?”

“Muito. Engraçado que até hoje eu tenho um carinho muito grande por ele. Mesmo que nunca tenha trocado uma palavra com ele. E tu? Que tu sente pelo Neneco?”

“Ah, nada. Ainda mais que hoje ele deve ser um hétero top. Passou…”

“Sim.”

No silêncio momentâneo pensamos nos dias que se seguiram àquela noite, todos os nossos outros dias, abalados pelos primeiros amores da vida, mas também marcados pelo apagamento natural dos primeiros amores de nossas vidas. Seja pelo meu silêncio, ou pela recusa de Neneco à minha irmã. Ela ouvia o que eu pensava.

“Se não fosse ele nós não seríamos irmãos, talvez. Não é?”, ela disse.

“Valeu, Neneco.”

“Valeu. Neneco… Como tu está? De verdade?”

“Eu tenho sonhado muito. Visto ele nos meus sonhos, sentindo ele nos meus sonhos e… não sei. Só sei que eu precisava disso. Disso.” Olhei ao redor, olhei para ela e tão logo meus olhos encheram d’água. “Lembrar das coisas, oxigenar meus dias, pensar em tempos melhores. Voltar, pra começar a caminhar de novo.”

“Tu lembra né… seu idiota, tu não tá sozinho. Tu é importante, e é amado. Tu nunca, nunca está sozinho. Quando as coisas estão difíceis, é fácil de esquecer.”

Chorávamos tranquilamente. Naqueles dias difíceis, chorar era sinônimo de extremos, de corpo em convulsão, de pensamentos agressivos e imparáveis. Mas não ali, não naquele momento, não com a mana do meu lado, no marco original da nossa irmandade.

“Eu sei que nessa tua cabecinha aí”, ela disse, batendo o indicador na minha testa, “Tu está se perguntando se as coisas vão sempre estar do mesmo jeito. Se tu nunca vai conseguir se afastar, deixar as coisas para trás… Mas o tempo… ele realmente muda as coisas. Muda as coisas.”

Nossas mãos se agarraram e tudo não só pareceu tranquilo como de fato estava tranquilo. A noite silenciosa estava virada em calor e conforto e aqueles dias agitados, febris em ansiedade, iam deixando de ecoar, areia no fogo, sopros em um corte. E mesmo as músicas tristes, que pareciam costurar meus rasgos com agulhas embebidas em álcool, pareciam tratá-las de forma mais carinhosa, versos alheios que conversavam comigo e até diziam que as coisas ficariam melhor. O que eu sentia agora não era tanto a sua ausência, mas sim a sua presença: a permanência em mim e no meu corpo. O sentia em meus ossos, como cálcio. Enrubesci comigo mesmo com um pouco de vergonha ao pensar na hipótese de tirar daquele homem a força para seguir. Tão clichê, no fim das contas. Mas tão imediatamente percebi que, de um jeito ou de outro, ele fazia parte do que eu era e do que eu seria dali em diante. Decidi que ele seria uma coisa boa pois, afinal, apesar de tudo, apesar de não entender de forma palpável o que sentia por ele — tão tolo por achar que as coisas que sentimos podem ser palpáveis — ele fora uma coisa boa. Difícil de entender, difícil de sentir, mas boa. Não havíamos dado errado, no fim, mas sim certo por alguns tantos momentos, que eram tão gostosos, suaves e tranquilos que seria injusto taxá-los como momentos de algo que não deu certo. No fim, nem tudo é poesia. Nem tudo é só isso, ou só aquilo. Parece tão simples, mas é tão fácil de esquecer.

Quando o outro dia chegou, banhado por um sol quente que não tinha o mínimo interesse de secar a umidade que escorria pelas paredes que fechavam salas, cozinhas, banheiros, quartinhos e taperas, a mãe andava já ansiosa, falando no passado, em sobre como o tempo passa — desde o tempo de um final de semana com os filhos até o tempo de uma vida com e sem filhos. Me colocou a bater a maionese caseira de todo domingo e a mana a descascar as batatas de todo domingo e ali, na sala iluminada, lembramos das manhãs e das noites, das brigas e das pazes, das distâncias e das proximidades, do João Batista que perdera uma perna, da Marilene que ganhou outro par de gêmeos (agora gêmeas, Maria Eva e Eva Maria), da rua que agora é asfaltada, da briga dos primos pelo terreno ao lado, da central de fofocas do outro lado da rua, da nova namorada do tio Maneco, do estranho casamento do Tiago, da morte do tio Cléber, e por aí em diante, num círculo de lembranças no qual uma se agarrava a outra e essa por sua vez em mais duas que vinham embutidas de outra tantas que faziam a casa chorar de tristeza, de nostalgia, de felicidade, de saudade e umidade. E aquele guri cujos lábios ensaiavam tornar-se carnudos nos observava quieto, talvez acompanhado da menina de coque apertado no alto da cabeça e pela mulher alta, de traços suaves mas potentes, furiosos numa delicadeza áspera, linda de um jeito que só ela sabia ser. Os meus dedos estavam cheios de maionese — “a lambuzeira! Miguel não sabe fazer nada sem lambuzeira!” — os da mana cheios de batata — “a Ana deixa metade das batatas nos dedos” — e os da mãe com tudo. Com os fios de nossas vidas, com o cimento daquelas paredes, com o calor das mantas de lã, o gelo dos refrigerantes, os calos dos serviços gerais e o peso da nossa criação. Era lindo ouvi-la falar, mais belo ouvi-la se abrir, coisa que ela nunca fizera e, com o avançar do tempo sobre tudo, decidira fazer.

Era sobre esses momentos que pairavam a sensação que eu sentira falta: a sensação de entender de onde eu vinha e, por mais burguês safado que pudesse soar, entender quem eu era. Pois Ana tinha razão: quando as coisas estão ruins é fácil de esquecer. Todo o redemoinho de sensações na qual eu fora jogado quando o conheci — seja no meio-fio, seja no carnaval, seja no terraço, seja no quarto, ou em qualquer um dos momentos bons e ruins que vivemos — me soprara para longe daquele guri de cabelo baixinho, cujos lábios ensaiavam para ficarem carnudos, aquele menino que sonhava com tudo e mais um tantinho enquanto olhava para o telhado sobre a cama. Fora ele, afinal, que construíra, pedaço por pedaço, o caminho pelo qual eu caminhava. E que era, enfim, o caminho que eu tanto queria.

O almoço ficou pronto tarde, como em todo domingo. E como em todo o domingo a mãe reclamara que tinha acordado tarde demais. Eu e Ana desmontamos a mesa de dentro da casa da vó, aquela mesa histórica, sobre a qual dançaram perigosamente tantos bolos de aniversário, tantas pratos vazios depois dos churrascos, tantas cremeirinhas com restos de pudim, tantos e tantos copos com restos de cerveja quente. Colocamos no meio do pátio, sob o sol, sob o tempo que passava e nunca mais voltaria. Chamamos tio Maneco e chamamos a vó, nos servimos da salada, da carne assada no forno mesmo — “Não dá pra pedir pro Maneco assar, a carne sempre fica crua” a mãe dissera — e comemos. Não demorou muito para que as nuvens começassem a salpicar o céu de branco e a vó, na sua sentença sábia de anos de dias quentes como aqueles, se quedou a olhar pra cima.

“Vai chover em seguida.”

“Para de olhar pra cima véia, tu vai tontear e vai cair”, disse tio Maneco, gargalhando aquela gargalhada que o vô odiava e que ali eu sabia que ele fingia odiar.

“Vou cair uma mão nessa tua cara”, rebateu a vó, rápida e certeira.

E rimos.

E choveu, afinal. Mas só à noite, e na noite do outro dia ainda, quando Ana já tinha ido embora no seu carro, depois de insistir para que eu fosse junto com ela. Mas eu precisava de mais alguns momentos ali, sobre aquele chão, sob aquele céu e ao redor daquelas paredes. Na segunda-feira acompanhei o ritmo da mãe, da vó e do tio Maneco. Vidas aposentadas de trabalhos, mãos que funcionavam para lá e para cá sem parar um minuto para manter de pé aquele lugar e aquela história.

Fui à tapera e passei mais uma vez a mão por suas paredes descascadas, uma madeira úmida, quase esponjosa. Peguei um prego e risquei mais fundo a marca no umbu e ainda fiz outra, mais pra baixo, próxima às raízes: essa fase ruim vai passar. Ri de mim mesmo por ser tão futilmente classe média. Fui ao quartinho do vô e deitei no chão, dobrando as pernas agora compridas demais para ficarem esticadas em todo seu comprimento, e sonhei de olhos abertos olhando para o teto e para os livros dele, hoje tão empoeirados, mas marcados pelas impressões digitais do próprio vó e daqueles outros tantos que passaram por ali. Andei pela casa, sentei na sala, passei o dedo na fuligem do fogão a lenha, me olhei no reflexo da antiga televisão de tubo no canto da cozinha toda amarela e por fim sentei na beirada da banheira, os pés em meias, sentindo cócegas com o friozinho que começava a subir das coisas, agora que aqueles dias quentes estavam prestes a acabar.

A mãe entrou no banheiro. Não pareceu surpresa de me ver ali. Aprendeu com o tempo que aquela peça verde-esmeralda que a vó tanto amava era o meu refúgio e o de Ana. Sentou ao meu lado e não me olhou, mas pousou a mão sobre a minha, sabendo daqueles dias febris de ansiedade que precedem as dolorosas quebras de vínculos. Eu não havia falado muito sobre ele para a mãe, apenas o suficiente. Que estávamos juntos e que eu amava de um jeito especial e que as coisas estavam boas — mesmo que não estivessem totalmente boas. Foi o suficiente para ela sempre perguntar por ele quando ligava e também o suficiente para soltar um suspiro de lamento quando eu contei, com a voz encharcada, que nós não dividíamos mais os nossos dias.

“Ah, que pena meu filho…”, ela disse, quedando no seu silêncio, mas pensando — e eu sabia que ela estava pensando — sobre como eu estava e se Ana estava me dando a atenção suficiente. “E eu nem conheci ele”, ela disse por fim. E eu ri, chacoalhando as lágrimas, porque aquele tipo de detalhe banalmente importante era algo que a mãe lamentaria para o resto da vida.

“Sabe, mãe”, eu disse, sentado ao lado dela na ponta da banheira, olhando para meus próprios pés sem conseguir encarar a sua visão úmida logo ali ao meu lado. “Eu tenho estado bem triste. Mas não aquela tristeza de sempre, que nasceu comigo… mais triste. Muito triste… e parece tão bobo quando eu falo, que eu acabo nem falando. Mas é que… eu acho que sempre fui desse jeito né? De chorar demais por coisas que parecem pequenas demais. Bom, no fim eu vi que as coisas não eram tão pequenas assim. Que eu não entendia nada” . Comecei a riscar um círculo imaginário no chão com o meu dedão direito. “Uma coisa me deixou muito pra baixo mas… mas eu tô tentando seguir em frente. Agora que eu sei que isso não é bobagem, e que é da vida a gente chorar por coisas que acontecem. E agora que eu lembro de muitas coisas que vão me ajudar a seguir, eu acredito de verdade que essa fase ruim vai passar. Que as sombras vão ficar mais claras e que eu vou voltar a sorrir de verdade. Do mesmo jeito que tu me fazia sorrir quando a gente ia na praça, ou quando a gente só caminhava na rua.”

A mãe apertou minha mão com um carinho intenso que eu só soube chorar e despertar daquele diálogo imaginário no qual eu falava tudo para ela. No fim, quando finalmente a olhei nos olhos e nossas lágrimas se encontraram, cada uma escorrendo pelo seu respectivo rosto, percebi que nem precisaria falar mais nada. Não era à toa, afinal, que aquela casa era uma casa de silêncios. As coisas sempre eram ditas de outras formas.

Ainda não chovia quando eu fui embora, quando a noite se arrastava pelo céu, deixando as nuvens num tom avermelhado de adeus. Estava fresco na frente do pátio, e eu estava na dúvida se era a minha mochila que estava mais leve ou se era eu mesmo.

Encontrei o guri na frente, voltando do colégio. Ao longe, nas vilas vizinhas, a fumaça da lareira de algum velho friorento subia ao céu. O guri me viu e, me vendo, tive a certeza de que tanto eu quanto a mochila estavam leves.

“As coisas não vão parecer muito fáceis, às vezes. E de fato elas não vão ser”, eu disse me agachando diante de mim mesmo, olhando naqueles meus olhos que sempre foram miúdos. “Mas tu tem sempre que lembrar que tu não está sozinho. E que tu é amado. E que tu importa. Parece bobo né? Mas não é. Nos tempos difíceis é fácil de esquecer. É fácil ver tudo como uma só coisa. Uma só coisa… ruim. Às vezes, o amor que a gente sente vai nos machucar. E tu vai se questionar se as coisas que tu sente são mesmo reais. Mas tu precisa lembrar, tu sempre precisa lembrar que cada pedaço de sentimento vai te formar e cada decisão tomada com esses sentimentos vai te formar também”. Toquei seu rosto, que não tinha uma única lágrima, apenas um fascínio discreto, um brilho triste e sonhador. “ O tempo… ele muda as coisas. E ajusta tudo. E se não ajustar… bom, a gente precisa aprender a aprender a lidar com um relógio estragado.”

Rimos. Baixinho. Para que ninguém ouvisse. Naquela hora, a mãe e a vó tomavam chimarrão na beira do fogão a lenha assistindo novela, mas seus ouvidos eram atentos. O abracei. Ele levantou e foi embora, com aquela mochila que parecia tão pesada. Mas só parecia, porque ela era leve, assim como ele. Leve e bonito. Ele saiu caminhando e ainda olhou umas duas vezes pra trás com aquele rosto que era o meu, só que diferente, mais velho, decidido. Não me abanou. Eu achei que estava sonhando, mas olhei o céu e senti o frescor do fim da tarde, quando o frio começava a se espichar pra se enrolar sobre as pessoas. Eu não estava sonhando. Tive a certeza quando a mãe espiou pela janela e mandou eu sair da aragem que começava a cair, dizendo que tinha pão feito em casa que não era feito na nossa casa pro café e perguntando porquê eu e a mana não havíamos voltado juntos do colégio. Fui correndo. A única coisa que não fazia muito sentido era aquilo que escorria aos montes pelo meu sovaco, como se fosse verão. O suor.

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